A
urina de um homem sempre cai perto dele.
Provérbio
Camarada
Excelência
O
obséquio deste relatório é a urgência da situação nesta
localidade, no âmbito dos explosivos acontecimentos e dos
acontecimentos explosivos. A situação em si é muitíssimo
gravíssima, fora do controle das estruturas
político-administrativas. Suspeitamos a sabotagem do inimigo,
muito-muito para nos desacreditar em face da comunidade mundial.
Ainda desconfiei desse padre Muhando. Até esteve, a meu mando,
aprisionado. Mas ele não é capaz de nada. Suspeito, sim, de Ana
Deusqueira cuja existência tem feito muitas despesas no coração
das massas populares. Essa mulher, aliás, merece um parágrafo.
Ela
é uma má-vidista, mulher de pronto-pagamento, cujo corpo já foi
patrocinado pelo público masculino em geral. Mesmo sobre a minha
vida essa cuja Ana já espalhou confusão, criando tristes dicências
sobre a minha digna conduta. Esses boatos atravessaram a vila e os
bairros de caniço. É verdade, mesmo os caniceiros costumam de
comentar-me. É como o Camarada Sua Excelência muito bem diz: os
vulgares trazem feridas nas costas, os chefes as trazem na testa.
Qual o propositado objetivo dessa Ana? Para mim é vingança. Não
esqueçamos que ela foi presa e transferida para um campo de
reeducação, aquando da Operação Produção. Ou pode ser um caso
comigo, envolvimento mal resolvido. Desses: amor com amor se apaga.
A
minha respectiva Ermelinda não para de insistir que eu prenda Ana
Deusqueira. Minha esposa dedica muitíssimo ódio à tal mulher. Para
ela tudo está claro: a prostituta é que faz acionar os
rebentamentos. Que eu sei e que desfaço de contas que não há
provas. Todavia, pergunto eu: chego e calabouço-a assim, como se o
nosso país fosse terra de direitos desumanos? Ainda por cima com o
nariz dessa malta estrangeira por aí a cheirar-nos?
Estou
preocupadíssimo, a ponto de panicar. Esse italiano, esse padre, o
feiticeiro mais todas essas maltas. O que querem? Onde vão parar?
Noutro dia até tive um sonho. Nós fazíamos as cerimônias chamando
os nossos heróis do passado. Vieram o Tzunguine, o Madiduane e os
outros que combateram os colonos. Sentámos com eles e lhes pedimos
para colocar ordem no mundo nossode hoje. Que expulsassem os novos
colonos que tanto sofrimento provocavam na nossa gente. Nessa mesma
noite acordei com Tzunguine e o Madiduane me sacudindo e me ordenando
que me levantasse.
— Que
estão fazendo, meus heróis?
— Você
não pediu que expulssássemos os opressores?
— Sim,
pedi.
— Pois
então estamos expulsando a si.
— A
mim!?
— A
si e aos outros que abusam do Poder.
Viu?
Esse foi o sonho, uma vergonha. Pois também o Camarada Excelência
entrava nele. Pontapeado, como eu. Os resistentes da nossa gloriosa
História chutando-nos fora da História? Mas o mais grave, nesse
pesadelo, foi o seguinte: os heróis ameaçaram meu enteado Jonassane
que, se ele não devolvesse as terras que ocupava, eles o fariam
desaparecer dali. E não é que, no dia seguinte, já fora do sonho,
em plena vida real, meu enteado não dava aparecimento? Parece,
afinal, que o moço fugiu para o país vizinho. E pior: carregando
parte das minhas economias. Isto é obra de forças explicáveis?
E
agora, Excelência, me desculpe muitíssimo, mas eu vou-lhe fazer uma
autocrítica. Porque, afinal, nós andamos a gritar blasfêmias
contra os antepassados. Estou a falar: é que, de outra maneira, não
se entende como desataram acontecer coisas que ninguém pode
acreditar. Por exemplo, a semana passada um burro-macho deu parto uma
criança. Nasceu uma pessoa de pele e pelo, como eu e a Excelência.
Ou perdão, nem vale a pena misturar o seu devido nome com assunto de
burros e não burros. Contudo, aconteceu, assim mesmo, um bebé
nascido de um bicho. E ainda mais estranho: a criança vinha calçada
de botas militares. Foi um choque muitíssimo enorme. O jornalista
local da rádio, o radiofonista, até queria dar a notícia, mas eu
não autorizei. São coisas que dão vergonha em termos de
civilização e da democracia. Para não falar do prestígio das
gloriosas forças armadas, ali representadas por botas e
desatacadores. Bem basta o diz que diz que nos vem dessa porcaria das
explosões.
Fui
chamado para comprovar a verdade do acontecimento do burro. Mas
recusei. Confesso, Excelência: tinha receio. Não medo, receio. E se
fosse tudo factualmente autenticada verdade? Como se pode combinar a
explicação da coisa, conforme a atual vigência de ideias? Ou mesmo
consoante a antiga conjuntura marxista-leninista? Sabe o que eu digo?
O céu está em obras, só tem caído ferrugem lá das nuvens. Deus
lhe perdoe, Excelentíssimo. Pergunto uma coisa, Excelência: o
senhor anda a sonhar legalmente? Sim, os sonhos condizem-se na sua
cabeça? É que comigo não. Acordo cheio de tiques e trejeitos. Lhe
digo, por descargo de inconsciência: me converti num trejeitoso,
pareço um desses xidakwas sem destino.
Analisei
a sua última carta e concordo bastante com a sua esclarecida
opinião: é um problema eu ser do Sul, não falar a língua daqui.
Mas o facto de minha mulher ser uma legítima local me pode
contribuir. Devido ao adiantado das linhas não me prolongo mais,
saudando a sua firme liderança nos assuntos do Estado e as
transformações capitalistas em curso a favor das massas populares.
P.
S. — Em anexo, confesso: minha mulher, mesmo ela, já apresenta um
comportamento um pouco-assim. Pois, uma dessas tardes ela foi
assistir essas cerimônias das populações. Foi. Palavra da sua
honra, Excelência. O ter ido já é grave. Mas não se limitou a
assistir. Dançou, cantou, rezou. Verdade, Excelência, não foi ela
que me disse, foi relatório dos seguranças. Chegou a casa era já
adiantosamente noite, mostrando um cansaço muito lamentoso. Não
disse nada, não comeu, não nada. De repente, soltou um suspiro e
com voz que eu nunca lhe escutei disse:
—
Marido, esta noite mais um soldado vai
explodir!
E
quer saber a maior? Foi meu dito, meu desfeito. Pois, nessa noite
mesmo, consagrou-se mais um acidente com um desses nação-unidenses.
O tipo esfarelou-se todinho, nem poeira dele sobrou, lavado seja
Deus. Como eu interpreto tais atitudes? Já me ocorreu que Ermelinda
estivesse metida no assunto. Mas essa suspeita veio e foi. Não posso
imaginar-me dando prisão à mãe do filho de seu anterior marido.
Que
posso eu fazer? Transferir a minha própria esposa para a capital?
Declarar-lhe uma doença, interná-la no posto-saúde, com
cinquentena? Estou escrevendo torto por linhas direitas, me desculpe
os atrevimentos. Junto com o portador desta carta seguem os cabritos
que me pediu e alguns garrafões de sura. São sete bichos e vinte e
cinco unidades de bebida. Confira, por favor, para evitar tentação
de desvios dos quadros médios.
Mia
Couto, in O
último voo do flamingo
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