Tenho
poucos amigos esnobes; um deles é tão esnobe que, ao observar e
ouvir com atenção uma pessoa incomum, ele a compara com uma
personagem de um romance, quase sempre francês.
Outro
dia, depois de um encontro com leitores, esse amigo apontou para dois
homens que não paravam de conversar em voz alta e me perguntou: “O
mais exibido e cínico não lembra o sobrinho de Rameau?”.
Fez
essa pergunta em francês, com um sotaque pra lá de afetado, e
depois traçou afinidades entre o falastrão cínico e o personagem
de Diderot.
Ri
da observação disparatada, mas não disse nem podia dizer nada: eu
pensava numa viagem ao alto rio Negro em 1979, uma viagem mais
próxima ao coração das trevas ou aos romances A voragem e
Os passos perdidos do que da prosa francesa do século XVIII.
Enquanto meu amigo falava em francês, eu me lembrava dos sons de
línguas indígenas que tinha ouvido em São Gabriel da Cachoeira e
da paisagem belíssima desse lugar da Amazônia.
Acho
que eu e ele andávamos fora de prumo, porque eu me esforçava para
recordar palavras indígenas, e ele não parava de falar sobre o
sobrinho de Rameau e seu duplo brasileiro. Mas não estávamos nos
arredores do Palais Royal, e sim num bairro humilde desse subúrbio
do mundo. Disse a mim mesmo que esse meu amigo talvez fosse o
penúltimo afrancesado da América do Sul, e logo me lembrei de uma
declaração de Jorge Luis Borges: na Buenos Aires dos anos 1930,
quem não lia em francês era considerado analfabeto.
Claro
que há exagero nessa afirmação. Mas quando o autor de Ficções
acrescentou que as pessoas estudavam inglês para fazer negócios, e
não para ler Shakespeare, penso que não exagerou nada.
Quando
se fala da prosa de ficção do século XIX — a era dos grandes
romances — é impossível não pensar nas obras russas e francesas.
“A literatura quase infinita da França”, disse Borges, que
também escreveu ensaios notáveis sobre Marcel Schwob e Flaubert, e
tantos outros. Isso sem contar a alusão nada gratuita à literatura
francesa nos contos do escritor argentino. Uma parte considerável da
obra de Samuel Beckett — que em 1962 dividiu com Borges o prêmio
Formentor — foi escrita em francês, num estilo que faz do autor
irlandês um dos grandes escritores franceses do século XX. No
passado e no presente, vários escritores trocaram sua língua
materna pela francesa. O argentino Hector Bianciotti não foi o
primeiro; o jovem escritor cubano Jaime Dobles de Altamor, que eu
conheci em Paris, não será o último.
As
observações de Borges parecem nostálgicas, mas na verdade são
críticas, pois assinalam o uso muito restrito da língua inglesa.
Meu
amigo esnobe sonha com a inclusão da língua francesa na grade
curricular do ensino público no Brasil. Ele ignora — ou finge
ignorar — que muitos estudantes mal sabem ler e escrever no idioma
vernáculo, e que o domínio deste é fundamental para a aprendizagem
de uma língua estrangeira. Quando lhe disse que muitos brasileiros
não sabiam a origem e o significado das palavras “ipanema” e
“tietê”, ele me olhou com um ar pedante e disse: “Se você
continuar assim, vai acabar como aquela criatura pancada… O biruta
do Barreto”.
“Biruta
do Barreto?”
“Ele
mesmo”, disse meu amigo. “Aquele sujeito louco, patético.
Esqueci o nome dele.” Referia-se ao personagem Policarpo Quaresma.
Tão transtornado, e tão brasileiro…
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
Nenhum comentário:
Postar um comentário