quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Negociar era um segredo para eles

A tarde já estava avançada quando o caminhão retornou, roncando, bufando, através do pó, e havia um lençol de poeira cobrindo a carroceria e o capô; a luz dos faróis estava obscurecida por um véu de poeira encarnada. Punha-se o sol quando o caminhão chegou, e a terra parecia sangrenta sob o efeito de seus raios. Al vinha sentado ao volante, sério e diligente, e o pai e o tio John, numa atitude condigna de chefes de clã, ocupavam o lugar de honra, ao lado do motorista. De pé na carroceria, segurando-se firmemente às bordas do caminhão, vinham os outros, a pequena Ruthie, de doze anos; Winfield, de dez, selvagem, de cara suja; ambos de olhar fatigado, mas cheios de entusiasmo, dedos e cantos da boca negros e pegajosos por efeito das balas de alcaçuz que tinham ganhado do pai quando na cidade. Ruthie, com um belo vestido de musselina rosada, que lhe ia abaixo dos joelhos, parecia uma mocinha, muito compenetrada. Mas Winfield não deixou de ser aquele menino malandro que aproveitava qualquer oportunidade para esconder-se atrás dos outros e fumar um toco de cigarro. Enquanto Ruthie sentia a força da responsabilidade que lhe davam os pequeninos seios em rebento, Winfield mostrava-se malcriado e sonso. Ao lado deles estava Rosa de Sharon, apoiando-se de leve nas grades, balouçando-se nos calcanhares e aparando nos joelhos e nas coxas os solavancos do veículo. Porque Rosa de Sharon estava grávida e mostrava-se prudente. Seus cabelos, trançados e enrolados ao redor da cabeça, pareciam uma coroa loura. Seu rosto redondo e suave, que até poucos meses antes tinha sido voluptuoso e convidativo, trazia as marcas da gravidez, o sorriso dos que se julgam importantes, o olhar de quem se considera perfeito, e seu corpo arredondado — os seios rijos e o ventre baixo, as ancas e nádegas duras que ela havia meneado tão deliberada e provocadoramente, como que convidando para palmadas ou carícias —, todo o seu corpo adquirira um ar de reserva, de seriedade. Até seus pensamentos convergiam totalmente para a criança que estava para nascer. Ela se balouçava nos dedos dos pés agora, para dar mais conforto ao bebê. E o mundo inteiro, para ela, estava grávido — pois ela só pensava em gravidez, nas funções da reprodução da espécie e na maternidade. Connie, seu marido de dezenove anos, que se casara com uma menina traquinas, gorducha e cheia de vitalidade, ainda se mostrava algo assustado e confuso com a mudança que nela se operara; pois que agora não mais havia aquelas lutas bravias na cama, não havia mordidas e arranhões, entre risos abafados terminados em lágrimas. Havia, isso sim, uma criatura de gestos cuidadosos, de atitudes discretas, que lhe sorria meiga, mas firmemente. Connie sentia orgulho de Rosa de Sharon e, ao mesmo tempo, medo dela. Cada vez que podia, depositava suas mãos nos ombros da mulher ou postava-se ao lado dela, bem junto, de maneira que seus ombros e coxas se tocassem, e sentia que assim se estabelecia uma ligação que, de outra forma, poderia ser rompida. Era um rapaz magro, de rosto afilado, originário do Texas, e seus olhos azul-pálido eram às vezes inquietantes, outras vezes mansos ou assustados. Era um bom trabalhador e devia dar um bom marido. Bebia bastante, mas não demais: brigava quando não o podia evitar e jamais provocava alguém. Numa reunião qualquer, mantinha-se calado, e, conquanto não desse mostras de sua presença, fazia-se notar de modo indubitável.
Se o tio John não tivesse cinquenta anos, e por isso não fosse considerado um dos chefes naturais da família, preferiria não se sentar no lugar de honra, ao lado do motorista. Por vontade dele, seria Rosa de Sharon quem ali estaria. Isto era impossível, porque ela era muito jovem, e além disso uma mulher. Mas o tio John não se sentia à vontade; seus olhos, que se poderia dizer tomados pela solidão, não achavam paz e seu corpo magro não relaxava. Quase sempre, o espírito solitário de tio John mantinha-o afastado dos homens e dos apetites. Ele comia pouco, bebia, e aferrava-se ao celibato. Mas, sob essa crosta de aparências, os apetites martirizavam-no tanto que acabavam por se expandir. Ali então ele comeria algo de indigesto, até cair doente, ou então beberia aguardente e uísque até tornar-se um pobre paralítico de pernas trêmulas e olhos lacrimosos e vermelhos; ou então correria a Sallisaw e satisfaria a carne numa meretriz qualquer. Contava-se que uma vez ele fora a Shawnee e se deitara com três mulheres ao mesmo tempo, ficando uma hora inteira, a resfolegar e gemer, às voltas com os corpos insensíveis das meretrizes. Mas quando um de seus apetites era satisfeito, ele se quedava novamente triste, solitário e cheio de vergonha. Escondia-se dos homens e procurava conquistar-lhes a amizade enviando-lhes presentes. Então, entrava nas casas e colocava gomas de mascar sob os travesseiros das crianças; depois cortava lenha e não deixava que lhe pagassem pelo trabalho. E então desfazia-se de tudo que possuía: sela, cavalo, um par de botinas novas. Não se lhe podia falar nessas ocasiões, pois que ele fugia de todos, ou, quando era possível, retraía-se para dentro de si mesmo, mostrando apenas seus olhos inquietos. A morte da mulher, seguida de meses de isolamento, marcou-o com o sentimento de culpa e de vergonha, transformando-o num solitário irremediável.
Mas havia coisas de que não podia escapar. Sendo um dos chefes da família, tinha que orientar, governar; agora mesmo, via-se forçado a ocupar o lugar de honra, ao lado do motorista.
Os três homens no assento da frente estavam de mau humor, enquanto o caminhão os levava para casa, através da estrada poeirenta. Al, debruçado sobre o volante, ora olhava o caminho, ora o painel, vigiando o amperímetro, cuja agulha oscilava suspeitosamente, o mostrador de óleo e o termômetro. E seu cérebro registrava todos os aspectos fracos do veículo. Ele escutava os queixumes do motor, resultantes provavelmente do estado ressequido do diferencial, e ouvia com atenção o vaivém dos pistões. Pôs a mão sobre a alavanca de câmbio e sentia assim o girar da engrenagem. Às vezes, cuidadosamente, verificava se a embreagem estava normal e se o freio não travava. De vez em quando podia levar uma vida de vagabundo, mas agora tratava-se de algo que se prendia à sua responsabilidade: o caminhão, seu funcionamento e sua manutenção. Se a viagem não corresse bem, a culpa seria dele, e conquanto ninguém jamais o culpasse, todos, e mesmo ele, Al, sentiriam que a culpa era realmente dele. E assim se mostrava cuidadoso e atencioso. Suas faces estavam tensas de tanta preocupação. E todos o respeitavam e respeitavam a sua responsabilidade. Até o pai, o chefe, sujeitar-se-ia a receber suas ordens, pegando em uma chave inglesa.
Estavam todos fatigados no caminhão. Ruthie e Winfield estavam cansados de ver tanto movimento, tantas caras, de tanto brigarem por causa das balas de alcaçuz e da goma que o tio John secretamente lhes enfiara nos bolsos.
Os homens no assento da frente estavam cansados, aborrecidos e coléricos por terem recebido apenas dezoito dólares por todos os objetos que tinham levado de casa para vender: os cavalos, a carroça, as ferramentas, os móveis. Dezoito dólares! Eles tentaram obter mais, procuraram convencer o comprador; mas capitularam quando este declarou que não lhes comprava coisa alguma, por preço algum. Desistiram e fecharam o negócio, vendendo tudo por dois dólares a menos que o preço previamente oferecido. E agora estavam cansados e atônitos, porque se tinham voltado contra um sistema cujo mecanismo não conheciam e que os vencera. Sabiam que a carroça e a parelha de animais valiam mais, muito mais. Sabiam que o comprador iria ganhar muito dinheiro revendendo os objetos que lhes comprara, mas não sabiam como deveriam ter agido para obter preço melhor. Negociar era um segredo para eles.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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