A
tarde já estava avançada quando o caminhão retornou, roncando,
bufando, através do pó, e havia um lençol de poeira cobrindo a
carroceria e o capô; a luz dos faróis estava obscurecida por um véu
de poeira encarnada. Punha-se o sol quando o caminhão chegou, e a
terra parecia sangrenta sob o efeito de seus raios. Al vinha sentado
ao volante, sério e diligente, e o pai e o tio John, numa atitude
condigna de chefes de clã, ocupavam o lugar de honra, ao lado do
motorista. De pé na carroceria, segurando-se firmemente às bordas
do caminhão, vinham os outros, a pequena Ruthie, de doze anos;
Winfield, de dez, selvagem, de cara suja; ambos de olhar fatigado,
mas cheios de entusiasmo, dedos e cantos da boca negros e pegajosos
por efeito das balas de alcaçuz que tinham ganhado do pai quando na
cidade. Ruthie, com um belo vestido de musselina rosada, que lhe ia
abaixo dos joelhos, parecia uma mocinha, muito compenetrada. Mas
Winfield não deixou de ser aquele menino malandro que aproveitava
qualquer oportunidade para esconder-se atrás dos outros e fumar um
toco de cigarro. Enquanto Ruthie sentia a força da responsabilidade
que lhe davam os pequeninos seios em rebento, Winfield mostrava-se
malcriado e sonso. Ao lado deles estava Rosa de Sharon, apoiando-se
de leve nas grades, balouçando-se nos calcanhares e aparando nos
joelhos e nas coxas os solavancos do veículo. Porque Rosa de Sharon
estava grávida e mostrava-se prudente. Seus cabelos, trançados e
enrolados ao redor da cabeça, pareciam uma coroa loura. Seu rosto
redondo e suave, que até poucos meses antes tinha sido voluptuoso e
convidativo, trazia as marcas da gravidez, o sorriso dos que se
julgam importantes, o olhar de quem se considera perfeito, e seu
corpo arredondado — os seios rijos e o ventre baixo, as ancas e
nádegas duras que ela havia meneado tão deliberada e
provocadoramente, como que convidando para palmadas ou carícias —,
todo o seu corpo adquirira um ar de reserva, de seriedade. Até seus
pensamentos convergiam totalmente para a criança que estava para
nascer. Ela se balouçava nos dedos dos pés agora, para dar mais
conforto ao bebê. E o mundo inteiro, para ela, estava grávido —
pois ela só pensava em gravidez, nas funções da reprodução da
espécie e na maternidade. Connie, seu marido de dezenove anos, que
se casara com uma menina traquinas, gorducha e cheia de vitalidade,
ainda se mostrava algo assustado e confuso com a mudança que nela se
operara; pois que agora não mais havia aquelas lutas bravias na
cama, não havia mordidas e arranhões, entre risos abafados
terminados em lágrimas. Havia, isso sim, uma criatura de gestos
cuidadosos, de atitudes discretas, que lhe sorria meiga, mas
firmemente. Connie sentia orgulho de Rosa de Sharon e, ao mesmo
tempo, medo dela. Cada vez que podia, depositava suas mãos nos
ombros da mulher ou postava-se ao lado dela, bem junto, de maneira
que seus ombros e coxas se tocassem, e sentia que assim se
estabelecia uma ligação que, de outra forma, poderia ser rompida.
Era um rapaz magro, de rosto afilado, originário do Texas, e seus
olhos azul-pálido eram às vezes inquietantes, outras vezes mansos
ou assustados. Era um bom trabalhador e devia dar um bom marido.
Bebia bastante, mas não demais: brigava quando não o podia evitar e
jamais provocava alguém. Numa reunião qualquer, mantinha-se calado,
e, conquanto não desse mostras de sua presença, fazia-se notar de
modo indubitável.
Se
o tio John não tivesse cinquenta anos, e por isso não fosse
considerado um dos chefes naturais da família, preferiria não se
sentar no lugar de honra, ao lado do motorista. Por vontade dele,
seria Rosa de Sharon quem ali estaria. Isto era impossível, porque
ela era muito jovem, e além disso uma mulher. Mas o tio John não se
sentia à vontade; seus olhos, que se poderia dizer tomados pela
solidão, não achavam paz e seu corpo magro não relaxava. Quase
sempre, o espírito solitário de tio John mantinha-o afastado dos
homens e dos apetites. Ele comia pouco, bebia, e aferrava-se ao
celibato. Mas, sob essa crosta de aparências, os apetites
martirizavam-no tanto que acabavam por se expandir. Ali então ele
comeria algo de indigesto, até cair doente, ou então beberia
aguardente e uísque até tornar-se um pobre paralítico de pernas
trêmulas e olhos lacrimosos e vermelhos; ou então correria a
Sallisaw e satisfaria a carne numa meretriz qualquer. Contava-se que
uma vez ele fora a Shawnee e se deitara com três mulheres ao mesmo
tempo, ficando uma hora inteira, a resfolegar e gemer, às voltas com
os corpos insensíveis das meretrizes. Mas quando um de seus apetites
era satisfeito, ele se quedava novamente triste, solitário e cheio
de vergonha. Escondia-se dos homens e procurava conquistar-lhes a
amizade enviando-lhes presentes. Então, entrava nas casas e colocava
gomas de mascar sob os travesseiros das crianças; depois cortava
lenha e não deixava que lhe pagassem pelo trabalho. E então
desfazia-se de tudo que possuía: sela, cavalo, um par de botinas
novas. Não se lhe podia falar nessas ocasiões, pois que ele fugia
de todos, ou, quando era possível, retraía-se para dentro de si
mesmo, mostrando apenas seus olhos inquietos. A morte da mulher,
seguida de meses de isolamento, marcou-o com o sentimento de culpa e
de vergonha, transformando-o num solitário irremediável.
Mas
havia coisas de que não podia escapar. Sendo um dos chefes da
família, tinha que orientar, governar; agora mesmo, via-se forçado
a ocupar o lugar de honra, ao lado do motorista.
Os
três homens no assento da frente estavam de mau humor, enquanto o
caminhão os levava para casa, através da estrada poeirenta. Al,
debruçado sobre o volante, ora olhava o caminho, ora o painel,
vigiando o amperímetro, cuja agulha oscilava suspeitosamente, o
mostrador de óleo e o termômetro. E seu cérebro registrava todos
os aspectos fracos do veículo. Ele escutava os queixumes do motor,
resultantes provavelmente do estado ressequido do diferencial, e
ouvia com atenção o vaivém dos pistões. Pôs a mão sobre a
alavanca de câmbio e sentia assim o girar da engrenagem. Às vezes,
cuidadosamente, verificava se a embreagem estava normal e se o freio
não travava. De vez em quando podia levar uma vida de vagabundo, mas
agora tratava-se de algo que se prendia à sua responsabilidade: o
caminhão, seu funcionamento e sua manutenção. Se a viagem não
corresse bem, a culpa seria dele, e conquanto ninguém jamais o
culpasse, todos, e mesmo ele, Al, sentiriam que a culpa era realmente
dele. E assim se mostrava cuidadoso e atencioso. Suas faces estavam
tensas de tanta preocupação. E todos o respeitavam e respeitavam a
sua responsabilidade. Até o pai, o chefe, sujeitar-se-ia a receber
suas ordens, pegando em uma chave inglesa.
Estavam
todos fatigados no caminhão. Ruthie e Winfield estavam cansados de
ver tanto movimento, tantas caras, de tanto brigarem por causa das
balas de alcaçuz e da goma que o tio John secretamente lhes enfiara
nos bolsos.
Os
homens no assento da frente estavam cansados, aborrecidos e coléricos
por terem recebido apenas dezoito dólares por todos os objetos que
tinham levado de casa para vender: os cavalos, a carroça, as
ferramentas, os móveis. Dezoito dólares! Eles tentaram obter mais,
procuraram convencer o comprador; mas capitularam quando este
declarou que não lhes comprava coisa alguma, por preço algum.
Desistiram e fecharam o negócio, vendendo tudo por dois dólares a
menos que o preço previamente oferecido. E agora estavam cansados e
atônitos, porque se tinham voltado contra um sistema cujo mecanismo
não conheciam e que os vencera. Sabiam que a carroça e a parelha de
animais valiam mais, muito mais. Sabiam que o comprador iria ganhar
muito dinheiro revendendo os objetos que lhes comprara, mas não
sabiam como deveriam ter agido para obter preço melhor. Negociar era
um segredo para eles.
John
Steinbeck, in As vinhas da
ira
Nenhum comentário:
Postar um comentário