segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Brasileiros perdidos por aí

Muitas das nossas promessas são vãs, mas prometi a mim mesmo que, no começo deste ano, faria uma faxina no meu escritório, que parece um almoxarifado com objetos inúteis e papéis esquecidos há muito tempo.
Com tanta chuva e umidade desse e de outros verões paulistanos, encontrei folhas suadas e mofadas de um caderno pautado, onde rabiscara poemas inacabados, sem data, talvez escritos em outras cidades, ou durante alguma viagem. Separei e encaixotei livros que não vou ler; numa gaveta encontrei um cemitério de despertadores com pilhas oxidadas; marcavam horários diferentes, mas todos pararam de funcionar minutos depois da meia-noite ou do meio-dia.
Vasculhando aqui e ali, encontrei numa caixinha de madeira um charuto cubano datado de 1988 e um bilhete: presente do dr. Eliomar Sampère. Não me lembro desse doutor. Médico ou advogado? E por que diabo ele me deu um charuto de presente? Nunca fumei charutos, fossem cubanos, dominicanos ou baianos.
Separei centenas de folhas datilografadas: versões de manuscritos inéditos. Depois juntei outras folhas com anotações de argumentos e ideias literárias, muitas folhas com planos de aula e traduções, e joguei tudo na caixa de reciclagem de papel. Foi um ato impulsivo, sem tempo para arrependimento. A hesitação é a maior inimiga da faxina.
E essas três caixas de sapatos?
Abri duas e vi pilhas de cartas de outra era, cartões-postais enviados de Sitges e Lloret del Mar para Paris e Manaus: cartões manchados de mofo, grudados uns nos outros. Desgrudei-os com cuidado, eliminei traças gordas e vorazes, vi fotos belíssimas das duas cidades catalãs à beira do Mediterrâneo; para evitar crises de nostalgia e ardor nos olhos, preferi não ler as palavras dos postais, escritas com a mesma caligrafia. Se ela estiver viva, onde estará morando? Por uns segundos, fiz perguntas sobre o passado: um modo de ser nostálgico sem ser sentimental ao extremo.
Na terceira caixa encontrei o diário da minha segunda viagem ao alto rio Negro, com fotos aéreas dos grandes lagos, próximos a Iauareté Cachoeira; lembro que o piloto do helicóptero sobrevoou os lagos e fez uma rasante na floresta; depois ele disse: “Essa é a última fronteira virgem do Brasil”. Com o coração na boca, fotografei os lagos misteriosos e pedi ao piloto para que ganhasse altura, pelo amor de Deus. Vi fotos dessa viagem, e também duas borboletas cujas asas bicolores exibem uma geometria complicada e simétrica; penso que o escritor russo Vladimir Nabokov não conheceu esses espécimes da última fronteira virgem. São belos, e essa beleza resistiu ao tempo.
As duas borboletas foram encontradas mortas por uma índia tucano, e ainda vejo as mãos abertas me oferecendo os dois lepidópteros que repousavam inertes na floresta.
E no fundo da caixa — não sei por que nessa caixa, pois há aí um salto cronológico — encontrei seis folhas amassadas: a primeira versão de um longo poema escrito em Barcelona: “Brasileiros perdidos por aí”.
O poema não vale grande coisa, vai ver que não vale nada. No meu íntimo, penso que fiz essa faxina para encontrar esse poema escrito há mais de trinta anos, quando não sabia o que fazer da vida e, por isso mesmo, talvez fosse mais feliz.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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