quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

A tentativa mais importante

Pensando naquele tempo, Ulrich poderia hoje sacudir a cabeça, como se lhe falassem da transmigração de sua alma; sua terceira tentativa era diferente. Entende-se que um engenheiro se deixe absorver por sua especialidade, em vez de entregar-se à liberdade e amplidão do mundo dos pensamentos, embora suas máquinas sejam entregues até nos confins do mundo; pois precisa tão pouco ser capaz de transportar para sua alma particular o que há de audacioso e novo na alma de sua técnica, quanto uma máquina é capaz de aplicar a si mesma as equações infinitesimais que serviram para a sua criação. Mas da matemática não se pode dizer isso; nela reside a nova lógica, o próprio espírito, nela estão as fontes do tempo e a origem de uma extraordinária transformação.
Se for a concretização de sonhos ancestrais voar e viajar com os peixes, atravessar montanhas gigantescas, enviar mensagens com velocidade de deuses, ver o invisível a distância e ouvi-lo falar, ouvir falarem os mortos, deixar-se mergulhar em miraculosos sonos terapêuticos, poder ver como pareceremos vinte anos após nossa morte, saber em noites estreladas que há milhares de coisas acima e debaixo desta terra, das quais ninguém outrora tinha conhecimento; se luz, calor, força, prazer, conforto, forem sonhos ancestrais do homem — então a pesquisa atual não é apenas ciência mas magia, uma cerimônia de altíssima força emocional e cerebral diante da qual Deus desdobra uma a uma as pregas do seu manto, uma religião, cujo dogma é repassado e impelido pela dura, corajosa e flexível lógica matemática, fria e afiada como um bisturi.
Na verdade, não se pode negar que esses sonhos ancestrais, na opinião dos não-matemáticos, se concretizaram de repente de um modo bem diverso do que se imaginara. A cometa do postilhão de Munchhausen era mais bela do que a voz em conserva, industrial; a bota de sete léguas, mais bela do que um caminhão; o reino de Larino, mais belo do que um túnel de ferrovia; a mandrágora, mais bela do que um foto-telegrama; comer o coração da própria mãe para compreender os pássaros era mais belo do que estudar psicologia animal sobre a expressividade dos pios. Ganhou-se em realidade, perdeu-se em sonho. Não nos deitamos mais sob a árvore, espiando o céu entre o dedo grande do pé e o dedo médio, mas trabalhamos; também não devemos passar fome nem sonhar demais, se quisermos ser eficientes, mas comer bifes e fazer exercício. É exatamente como se a velha humanidade ineficiente tivesse adormecido sobre um formigueiro; quando despertou a humanidade nova, as formigas tinham entrado no seu sangue, e desde então ela precisa fazer movimentos incessantes, sem conseguir se livrar desse chatíssimo ímpeto de fanatismo pelo trabalho. Realmente não é preciso falar muito a respeito; a maioria das pessoas sabe perfeitamente, hoje, que a matemática entrou em todos os campos de nossa vida, como um demônio. Talvez nem todas essas pessoas acreditem na história do Diabo a quem se pode vender a alma; mas todas as pessoas que entendem alguma coisa de alma, por serem sacerdotes, historiadores e artistas, e tirarem boas vantagens disso, testemunham que foi a matemática que arruinou a alma, que a matemática é a fonte de uma inteligência perversa que faz do homem senhor da terra mas escravo da máquina. A secura interior, a monstruosa mistura de sensibilidade para os detalhes e indiferença para o todo, o enorme desamparo do ser humano num deserto de minúcias, sua inquietação, maldade, a incrível frieza do coração, cobiça, crueldade e violência que caracterizam nossa era, seriam, segundo esses relatos, resultado dos prejuízos que um aguçado pensamento lógico traz à alma! E assim, já no tempo em que Ulrich se tomou matemático, havia pessoas que profetizavam a derrocada da cultura europeia, porque nenhuma crença, nenhum amor, nenhuma candura restavam no ser humano; e significativamente todos foram maus matemáticos na juventude e nos anos escolares. Isso provou para eles, mais tarde, que a matemática, mãe da ciência natural exata, avó da técnica, também é mãe ancestral daquele espírito do qual finalmente brotaram os gases venenosos e os pilotos de guerra.
Só os próprios matemáticos e seus discípulos, os cientistas naturais, que sentiam em suas almas tão pouco disso tudo quanto os corredores de bicicleta, que pisam no pedal e nada veem do mundo senão a roda traseira do concorrente diante deles, viviam na ignorância desses perigos. Ulrich, porém, com certeza amava a matemática, por causa das pessoas que não a suportavam. Era menos um cientista do que alguém humanamente apaixonado pela ciência. Via que em todas as questões que esta julga de sua competência, cultiva um pensamento diverso do das pessoas comuns. Se colocássemos, em lugar de ideias científicas, ideias filosóficas, em vez de hipótese, experiência, e em vez de verdade, ação, não haveria obra de cientista natural ou matemático respeitável que, por sua coragem e força revolucionária, não superasse em muito as maiores façanhas da história. Ainda não nasceu o homem capaz de dizer aos seus discípulos: Roubem, matem, sejam lascivos... nossa doutrina é tão forte que transforma o estrume desses pecados em claros e espumantes riachos de montanha; mas na ciência acontece periodicamente que algo que até então era considerado erro, de repente inverte todas as ideias, ou quê um pensamento insignificante e desprezado começa a dominar todo um novo reino de ideias; e esses fatos não são apenas revoluções, mas constituem um caminho ascendente, como uma escada para o céu. Na ciência as coisas são tão fortes, superiores e magníficas como num conto de fadas. E Ulrich sentia: as pessoas apenas não sabem disso; não têm ideia de como se pode pensar; se pudéssemos ensiná-las a pensar diferente, também viveriam de modo diferente.
Certamente há de se perguntar se o mundo é tão errado que se precise mudá-lo a toda hora. Mas o próprio mundo já deu duas respostas. Pois desde que ele existe a maior parte das pessoas foi favorável à mudança, na juventude. Acharam ridículo que os mais velhos se prendessem às coisas permanentes e pensassem com seu coração, aquele pedacinho de carne, em vez de pensarem com o cérebro. Esses jovens sempre perceberam que a ignorância moral dos mais velhos é uma falta de capacidade para estabelecer novas ligações, como a habitual ignorância intelectual, e que a sua própria moral natural é uma moral de realizações, heroísmo e transformação. Contudo, assim que chegavam à idade de concretizar, não sabiam mais nada de tudo aquilo, nem queriam saber. Por isso, muitas pessoas para quem a matemática ou a ciência natural são profissões julgariam abusivo decidir-se pela ciência por motivos como os de Ulrich.
Apesar disso, na opinião dos especialistas não foi pouco o que ele fez nessa terceira profissão, desde que a abraçou, há anos.
Robert Musil, in O homem sem qualidades

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