I
Sobre
o fim do livro e da era Gutenberg, tenho duas breves histórias para
contar.
A
primeira é um sonho, ou um pesadelo: um chip armazena a biblioteca
do universo, uma biblioteca cujo acervo seria renovado por um piscar
de olhos, um esgar ou grunhido, quem sabe um soluço. Esse chip seria
implantado no ombro, na perna ou no órgão mais vital do corpo: o
coração do leitor. Bilhões de palavras no coração: há algo mais
poético? Mais sublime?
Um
chip implantado no cérebro seria robótico demais, além de ser uma
cena comum de ficção científica, algo bem menos estranho que uma
serpente de fogo numa montanha de gelo.
Com
esse chip cravado no corpo, o leitor não teria necessidade de olhar
para uma tela: a página escrita apareceria no ar, como se fosse uma
holografia. Textos soltos no espaço, sem qualquer suporte. A mais
fina e diminuta tela será um objeto anacrônico.
Meu
sonho (ou pesadelo) parou por aí.
II
A
outra história é coisa do passado.
No
amanhecer de um dia de 1979, conheci um piauiense que migrara para
São Paulo na década de 1960. Ele era dono de uma pequena pastelaria
na antiga rodoviária, onde eu comia pastel às cinco da manhã,
antes de pegar o ônibus para Taubaté.
Donato
me contou passagens de sua vida em um povoado miserável, próximo a
Santo Antônio dos Milagres. Aprendeu a ler com uma velha, que era
uma vizinha da tapera onde ele morava. Lia bula de medicamentos, lia
jornais velhíssimos que embrulhavam latas de leite enviadas pelo
governo, lia as palavras impressas nessas latas.
“E
um dia eu li um livro”, disse Donato, emocionado. “Um livro que
um vendedor de bugigangas deixou para mim. Lia devagar, duas, três
vezes cada frase, cada parágrafo. De vez em quando, parava de ler
para pensar. Li tantas vezes meu único livro que decorei os trechos
mais bonitos. Minha vida não valia nada, nem uma casca de cebola. Eu
era um jovem que não tinha onde cair morto, como se diz. Aí
consegui um emprego em Santo Antônio. Trabalhei quatro anos no
balcão de uma mercearia, economizei uns tostões e vim para São
Paulo. Quando ganhei um dinheirinho, abri essa pastelaria. E um dia
viajei para o Rio. Queria conhecer quem tinha publicado aquele livro,
queria ver o edifício da editora, as pessoas que trabalhavam com
livros. Não tive coragem de entrar, fiquei espiando na calçada,
olhando a placa com o nome da editora. Aí me deu vontade de fazer
uma coisa, e fiz mesmo. Abracei as paredes, beijei as paredes da
editora e beijei o livro que mudou minha vida.”
Milton
Hatoum, in Um
solitário à espreita
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