terça-feira, 7 de novembro de 2017

Um tempo agora emparedado

Na penumbra da sala, Bartolomeu Sozinho aguarda, derramado no sofá. Vê a esposa entrando, braços carregados de roupa. “Já foi bonita”, pensa ele, “agora pesam-lhe os flancos como a essas mulheres que surgem de traseiro mesmo que se apresentem de frente.” Bartolomeu recorda-se dos primeiros momentos do namoro, os iniciais encontros em que se tomou de encanto. E até discutiu o assunto com Sidónio Rosa, o médico português.
A beleza das mulheres, dizia um, é como esses dourados espinhos com que os bichos paralisam as vítimas. E os dois se aprovaram no seguinte: não existe mulher bonita, cuja beleza seja feita apenas de natureza. Existe, sim, o sentir da beleza. Mundinha não era a mulher mais bonita do Universo. Bartolomeu é que nunca olhara uma mulher de modo tão encantado. Esse amor crescera ao ponto de ele gostar dos pequenos ódios que ela lhe dedicava. Que mais ele podia continuar gostando?
Isto, caro Sidónio, não é amar: é amardiçoar.
Agora, Bartolomeu Sozinho está no escuro da sala, como um predador em preparo de emboscada. Vai espreitando a esposa que circula, pesada, pelos cantos da sala. O que fará ela, remexendo em cima dos móveis? A suspeita agita o peito do velho esposo. Procurará, a mando do médico, a pasta que ele esquecera no dia anterior? Cumpria ocultas instruções do português?
A amarga dúvida faz-lhe vir o fígado à boca, engole esse fel com um esgar. Mas é falso alarme. Mundinha apenas exerce os seus afazeres domésticos. Abre os armários, arruma no vazio das prateleiras o vazio que está dentro dela. Espaneja na parede um calendário do ano transacto e passa um pano úmido pela moldura da ceia de Cristo.
O marido não percebe se ela está cantarolando ou se está chorando. Num instante, o alvoroço se reinstala nele: a esposa dedica-lhe lágrimas de pêsames? Ou será que lagrimeja saudades não dele, mas de um tempo agora emparedado?
Está a chorar, mulher?
Munda refaz-se do susto, mão no peito. Suspira, entre alívio e enfado.
Saiu da caverna, marido?
Eu é que perguntei, primeiro. Perguntei se estava a chorar…
A chorar, eu?
Não, se calhar sou eu. Sim, quem sabe sou eu que choro e, como estou ficando surdo, já não me escuto chorar?
Um dia que eu chorar, meu velho marido, será para nunca mais parar.
Guardava tanta tristeza que desataria não um rio, mas uma torrente em que se afogaria de vez. E se afogaria ele também, não haveria navio que o salvasse. Mas era mentira. Porque, na verdade, Munda chorava. Fazia-o a horas certas, sempre no mesmo lugar sagrado. Bartolomeu Sozinho bem o sabia.
Tristezas, tristezas. Foi você a culpada, me atirou para os braços de outras.
Mais culpas!?! E ainda me queixo que você nunca me dá nada.
Você não me amou o suficiente.
Para si não há nunca o suficiente.
Não era apenas para ele que não bastava. O suficiente é para quem não ama. No amor, só existem infinitos.
Inconformado, o marido sopra impaciências como se fumasse a própria atmosfera. A eloquência da esposa sempre o deixou diminuído, e, nos momentos de aferição de forças, a palavra dela sempre o vergara, inferiorizado. Falar bem é um perfume que ela gosta de usar, mas que ele não lhe ofereceu.
Vim aqui para lhe fazer uma pergunta: você nunca desconfiou desse médico?
Você, Bartolomeu, você sempre cuspiu no prato da comida. Com esse português, nós só temos razões para ficar agradecidos.
O velho marido sacode a cabeça: Munda é católica fervente, como ele mesmo diz. Não importa quantas vezes o emendaram, ele insiste no qualificativo “fervente”. Porque, ajoelhada frente à cruz, ela confessa sentir o sangue ferver. Bartolomeu se pergunta: ali, tão longe, haverá anjo que se atreva? E mais ele se duvida: o que andará a esposa a pedir a Deus? De joelhos, ela deve pedir pelos dois, marido e mulher e, quem sabe agora, também inclua o cabrão do Doutor, tão familiar que ele já se tornou.
Pois eu desconfio, Mundinha. E tenho razões. Nunca ninguém, nem lá, na cidade dos ricos, teve assistência tão domiciliária.
Um ingrato é o que você é.
Já se perguntou, Mundinha: que sorte nos veio calhar aqui, neste fim do mundo, a nós que nunca tivemos Doutor nenhum?
E não merecemos essa sorte?
Nunca nos calhou coisa nenhuma, agora tomba do céu este português cheio de simpatias?!? Hein, Mundita, ou foi você que andou a cravar Deus com esses especiais favores?
Deus não se crava, você nem tem respeito pelo sagrado.
Ela sabe que pouco valem argumentos: Bartolomeu sempre se recusou rezar. “Com os deuses falamos”, argumenta ele. A palavra aberta, sem texto, criando o divino no improvisado diálogo. “E mais”, defende o velho, “rezar é sempre uma declaração de culpa.”
Começamos, submissos, por nos declararmos filhos Dele. Mas, na verdade, o que queremos é ser Deus. É por isso que a reza é sempre um pedido de desculpas. Está a perceber, Mundinha?
Você leu isso em algum lado, marido. Isso é complicado demais para sair da sua cabeça…
Não é que recuse a oração: eu aproveito é para rezar enquanto durmo.
Brinque, brinque. Depois, no Juízo Final, quero ver o que vai responder…
Para mim, o Juízo Final é todos os dias.
Vá é tomar os medicamentos.
Quer saber? Deitei esses medicamentos todos na sanita. Nesta minha boca já não entra mais nada.
Está maluco? Depois, queixe-se que morreu…
E se eu lhe disser que esse Doutorzeco não é a pessoa que você pensa?
Tenho que fazer, Barto. Não se esqueça de que sou eu quem dá de comer à casa.
Não vai para lado nenhum sem me responder a uma pergunta.
Mais uma?
Quero saber quem destapou os espelhos.
Fui eu. Foi para limpar, esqueci-me de os cobrir de novo.
Munda, Munda: não será que você me anda a enganar? Não será que anda a puxar lustro às belezas?
Sem responder, Dona Munda bate atrás de si a portada de rede. O velho reentra na obscura solidão do quarto. Pela janela vê a esposa afastar-se para o pátio e começar a pendurar a roupa lavada. E repara que o médico está chegando, avançando respeitosamente entre os lençóis brancos. Depois, ele fecha as cortinas. Um sentimento de ciúme, ferrugenta lâmina, corrói a sua alma.
Eu digo o que faço com as belezas, grande puta…
A ruminação da raiva é interrompida por um raspar na porta. O mesmo lacônico “porquê?” serve de licença para que Sidónio Rosa entre e se arrume, a ele e aos seus apetrechos.
Os móveis estão cobertos de pó, a janela tinha estado aberta, o velho Bartolomeu não resistira a escutar a conversa no pátio.
Diga-me, meu caro: por que não pergunta “quem é?”
É que eu não espero nunca ninguém.
Devia esperar, porque eu trago uma coisa para lhe oferecer.
Não preciso de nada.
As mãos estendidas de Sidónio Rosa suportam uma caixa de cartão. Bartolomeu permanece impassível, olhar preso na parede em frente. O português suplica:
Aceite, por favor, é um modo de lhe pedir desculpa por aquilo que disse ontem.
Ante a impassividade do mecânico, o próprio português desfaz o embrulho. Retira da caixa uma camisa branca. Estende-a como se hasteasse uma vitoriosa bandeira.
Deixe-me ajudá-lo a vestir. Levante os braços.
Passado um tempo, o velho amolece. Ergue-se, braços em Cristo, o corpo bamboleando ao sabor dos impulsos de Sidónio.
Está ótima, veja-se ao espelho.
Bartolomeu reage com indiferença. Sabe que os espelhos do quarto estão cobertos, mas mesmo assim perfila-se durante uns segundos. Camisa solta, desabotoada, volta a sentar-se e permanece alheio e espantalheado, como se assim tivesse estado desde que nasceu.
Ontem, descobri que Munda destapou os outros espelhos da casa.
E então?
E então?! Essa cabrita anda a cuidar das belezas. Eu pergunto: para quem é que ela se está a produzir?
O senhor sabe: as mulheres embelezam-se para elas próprias.
Conversas. Há sempre um alguém… —
Quem sabe esse alguém é você mesmo, meu caro Bartolomeu?
Não me faça rir que me dá tosse.
Talvez Munda se esteja a preparar para ser Mundinha. Quem sabe se esteja a fantasiar para lhe surgir menina, toda Mundita?
Ombros encolhidos, o velho olha pela janela. E se interroga: se ele não queria mais ver o mundo por que motivo espreitava tanto a rua? Lá fora, a esposa está recolhendo água do poço. Bartolomeu desvia o rosto:
Grande cabra, sempre a trabalhar e eu, aqui, todo descansado. Tudo isso apenas para me sentir ainda pior.
Por que razão não vai lá ajudar a carregar os baldes?
A gaja havia era de me lançar ao poço… — Não há poço que não tenha um crime para contar — acrescenta. Que os segredos, na Vila Cacimba, não se enterram nunca em cova. Ficam em buraco aberto como ferida que nunca ganha cicatriz.
Mia Couto, in Veneno de Deus, remédio do Diabo

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