A
canção terminou e sentei ereto na cadeira. Havia uma garota à
minha direita que eu não tinha notado até agora. Suas pernas
estavam embrulhadas numa meia colante cor de pólvora, tinham curvas
sedutoras, mas os joelhos eram ossudos e cadavéricos. Seu vestido
era de um tecido de feltro escuro e ela vestia um corpete branco com
uma jaqueta esporte escura. Seus dentes eram grandes, cintilavam com
vigor, mas não eram pequenos o suficiente para serem escondidos
naturalmente pelos lábios. Seus cabelos tinham a cor de fios de
cobre despidos de sua cobertura isolante. Contas de imitação de
topázio pendiam do seu pescoço, combinando belamente com seus
cabelos e olhos castanhos.
Levantando,
inclinei-me levemente na direção dela. Tentei parecer amigável.
—
Poderia dançar esta comigo?
— Por
que não? — ela disse. — É uma música bacana.
A
canção era um foxtrote lento.
— Só
um minuto — falei.
Ela
estava de pé quando voltei da bilheteria.
Seus
olhos estavam no nível da minha testa. Passamos pelo portão,
entreguei ao fiscal um tíquete e deslizamos pela pista. Suas pernas
eram rijas e vigorosas e acompanhavam meticulosamente meus passos
vacilantes. Meus dedos, na parte baixa de suas costas, moviam-se como
teclas de piano automáticas enquanto seus músculos subiam e
desciam. Seu pó de arroz e seu rouge exalavam um odor adocicado. Eu
o cheirei ansiosamente.
— Já
não o vi antes? Em Stanford?
Era
uma universitária. Eu não ia contar a ela que era estivador.
Esperava que não sentisse os calos em minhas mãos e relaxei os
dedos da mão esquerda.
— Sem
dúvida — menti —, sou inundado por erudição naquele glorioso
instituto.
Ela
riu.
— Você
dança exatamente como um homem de Stanford.
— Isso
é um cumprimento?
— Com
certeza!
Sua
maldita mentirosa, pensei.
— É,
sim — disse. — Nós, filhos de Leland, somos ruins das duas
pernas.
— Você
fala exatamente como um professor.
— Sim,
e essa é minha posição em Stanford — falei, num tom obviamente
jocoso.
— Poxa,
mas você é muito jovem.
Meu
Deus, ela acredita em mim. De fato, sou um sujeito monstruosamente
esperto, ou melhor, ela é uma garota monstruosamente burra.
— Eu
me formei no ano passado. É meu primeiro ano como professor.
— O
que ensina?
—
Comunismo.
Estava
seguro de que sabia mais sobre comunismo do que ela.
— Ora,
seu bandido. Comunismo é contra a lei.
— Que
lei? — perguntei, surpreso. — Não ouviu falar na Declaração de
Direitos?
— Bem,
você sabe — disse ela timidamente. — Sempre pensei que fosse
contra a lei.
— Que
absurdo! Incrível!
— Deve
achar que sou terrivelmente burra.
Ela
estava na defensiva. Eu podia ver Jurgen sorrindo.
— Oh,
não. Não é um erro muito sério — e então falei com suavidade.
— Mas você sabe, querida, Jeová não cometeu erros quando Ele
criou você, não é verdade?
Dançamos
cinco números sucessivos e, quando deixamos a pista, ela me chamava
de professor. Meu nome, eu disse, era professor Cabell.
Tomamos
leites maltados e sentamos no canto escuro do salão, quase atrás do
estrado da orquestra. Seu nome era Nina Gregg e cursava uma
pré-faculdade local. Mas logo me cansei de sua burrice, porque não
havia ninguém para quem eu a pudesse demonstrar.
Beijei-a
muitas, muitas vezes. Era um belo esporte beijá-la. Tinha lábios
que eram massas vermelhas macias e eram doces e grudentos,
agarrando-se aos meus como devia acontecer nos beijos. Ela jogou seu
corpo com descuido e vontade e gostei muito daquilo, porque nunca
tinha beijado uma universitária antes, e, tendo zombado do lendário
ardor das estudantes em livros, achei essa realidade extremamente
deleitável e surpreendente. Quando nossos lábios se fundiram, ela
botou os braços em volta do meu pescoço e seus dedos afundaram na
pele frouxa de minhas costas.
Depois
de meia hora disso, pedi a ela que caminhasse comigo ao longo da
praia, mas ela positivamente se recusou com um sucinto “Nunca!”.
Fiquei
zangado e quase esqueci que era um professor.
A
seguir, implorei a ela.
— Não.
Não vou sair deste salão.
— Por
que não?
Discutir
com ela não daria certo. Havia me excitado de tal maneira que minhas
têmporas latejavam. Encostei-me para trás, fechei os olhos e tentei
pensar em melhores persuasões. Ela também relaxou, jogando a cabeça
por sobre o encosto do banco.
Olhei
para suas coxas. Uma liga vermelha despontou debaixo da barra do seu
vestido.
Sem
que ela notasse, estendi a mão, puxei o elástico com os dedos,
estiquei-o e o soltei.
A
liga estalou de volta, pinicando-a. Atônita, agarrou minha mão
exclamando: — Ora, professor!
— Dez
milhões de desculpas.
— Devia
se envergonhar — disse ela.
— Você
não devia exibir suas coxas. Eu só a estava acautelando.
Continuou
segurando minha mão e sua palma estava dentro da minha. As pontas de
seus dedos moviam-se suavemente sobre os calos e sua mão enrijeceu,
como que se afastando de algo repulsivo. Aquela manhã, antes do
trabalho, eu tinha furado as bolhas e aplicado tintura de iodo para
impedir que a pele interna empolasse. Não podia trabalhar com luvas.
O rompimento das bolhas deixara arestas e crostas, como a pata de um
animal, de modo que esfregar minha palma no antebraço deixava marcas
de arranhão.
A
garota abriu minha mão e a pousou sobre o seu joelho.
— Céus
— disse. — Que mãos horrorosas. O que foi que você fez com
elas?
As
manchas de iodo pareciam sangue coagulado. Não pude pensar numa
evasão.
— Ora,
não é nada — disse.
— Claro
que é alguma coisa.
Ela
se pôs de pé e bateu com as mãos dos lados do corpo.
—
Vamos, você está mentindo para mim.
Ficou
muito furiosa. Os tendões no seu pescoço incharam.
—
Mentindo? — Eu continuava sentado.
— Você
não é professor nenhum. Você não passa de um cavador de valas,
motorista de caminhão ou coisa parecida.
— E
daí?
— E
daí? Olhe para suas mãos. Olhe para sua velha jaqueta de lenhador.
Você não é professor. Você é um mentiroso. É o que você é. Um
mentiroso safado.
Ela
estava quase berrando. Seus olhos começaram a lacrimejar. Fiquei
calado, mas se estivéssemos sozinhos eu a teria surrado. Olhei como
um tolo para as palmas de minhas mãos maceradas e tentei sorrir.
Muitas pessoas nos observavam. Vi uma velha de óculos que sorriu. Do
que está rindo, pensei, seu arcaico saco de ossos. Então tentei
encontrar palavras para modelar minha situação em literatura, mas
tudo o que pensei foi profanação, e meu punho contra a boca da
garota. Pensei numa ideia para uma história, em que o homem mata a
mulher, e me perguntei se meu caderno de anotações estaria por
perto para que pudesse botar no papel a ideia. Pensei que se eu
quisesse um dia me lembrar do incidente com complacência eu deveria
ficar de pé e dar um tapa na cara da garota, pelo menos. Em vez
disso, eu falei: — Me desculpe. Sinceramente, me desculpe.
— Oh,
pede desculpas, não é? Seu mentiroso safado.
Deus,
pensei, é a única acusação que ela conhece?
Sua
mão direita afastou-se do quadril e as costas da mão espancaram meu
rosto. O golpe causou coceira e dor.
Pulei
de pé. Queria derrubá-la. Mas, anotei mentalmente: “A mão dela
disparou e ele sentiu uma dor aguda debaixo dos olhos e pulou de pé.”
Resmungando
xingamentos, sentei-me de novo, lançando olhares de soslaio hostis à
audiência estupefata. A garota tinha desaparecido na multidão.
Subitamente
pensei em Nietzsche e Cabell e Nathan e Lewis e Anderson e muitos
mais. Que se dane Nietzsche. Que se dane o grande Mencken. Dane-se
Cabell. Dane-se o danado bando. Eu devia ter feito a megera em
pedaços. Qual é o problema de minhas mãos? Dane-se meu pai.
Dane-se minha mãe. Que eu mesmo me dane. Por que não bati nela? Por
que não lhe dei um trambolhão? Seja duro — Ah, Nietzsche, vá
embora, sim? Pelo amor de Deus, me deixe em paz por um minuto.
Conceitos do bem e do mal são apenas meios para atingir um fim. Tudo
o que é bom emana da força, do poder, da saúde, da felicidade e da
venerabilidade. O que quer dizer com venerabilidade? Não temor. Não,
ele quer dizer cheio de respeito. Eu devia tê-la matado. Jurgen é
de fato um sujeito monstruosamente esperto. Pelo menos ela pensou que
eu era um professor. Eu devia tê-la chamado de pusilânime ou
ignorante, pelo menos. A definição de um homem educado por Everett
Dean Martin é bem correta. A igualdade sexual deveria continuar —
mas que diabo eu poderia fazer? Nietzsche diz que no fundo os sexos
são antagônicos. Gostaria de botar minhas mãos sobre ela durante
dois minutos. Devia estar em casa. Preciso escrever setecentas
palavras e ler cinquenta páginas.
John
Fante, in A grande fome: Contos (1932-1959)
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