Fui
irmão de dragões e companheiro de avestruzes. ( Jó, XXX, 29)
Os
primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o
atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua
formação moral ficou irremediavelmente comprometida pelas absurdas
discussões surgidas com a chegada deles ao lugar.
Poucos
souberam compreendê-los e a ignorância geral fez com que, antes de
iniciada a sua educação, nos perdêssemos em contraditórias
suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer.
A
controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de
que eles, apesar da aparência dócil e meiga, não passavam de
enviados do demônio, não me permitiu educá-los. Ordenou que fossem
encerrados numa casa velha, previamente exorcismada, onde ninguém
poderia penetrar. Ao se arrepender de seu erro, a polêmica já se
alastrara e o velho gramático negava-lhes a qualidade de dragões,
“coisa asiática, de importação europeia”. Um leitor de
jornais, com vagas ideias científicas e um curso ginasial feito pelo
meio, falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se,
mencionando mulas sem cabeça, lobisomens.
Apenas
as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes,
sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto,
elas não foram ouvidas.
O
cansaço e o tempo venceram a teimosia de muitos. Mesmo mantendo suas
convicções, evitavam abordar o assunto.
Dentro
em breve, porém, retomariam o tema. Serviu de pretexto uma sugestão
do aproveitamento dos dragões na tração de veículos. A ideia
pareceu boa a todos, mas se desavieram asperamente quando se tratou
da partilha dos animais. O número destes era inferior ao dos
pretendentes.
Desejando
encerrar a discussão, que se avolumava sem alcançar objetivos
práticos, o padre firmou uma tese: os dragões receberiam nomes na
pia batismal e seriam alfabetizados.
Até
aquele instante eu agira com habilidade, evitando contribuir para
exacerbar os ânimos. E se, nesse momento, faltou-me a calma, o
respeito devido ao bom pároco, devo culpar a insensatez reinante.
Irritadíssimo, expandi o meu desagrado:
— São
dragões! Não precisam de nomes nem do batismo!
Perplexo
com a minha atitude, nunca discrepante das decisões aceitas pela
coletividade, o reverendo deu largas à humildade e abriu mão do
batismo. Retribuí o gesto, resignando-me à exigência de nomes.
Quando,
subtraídos ao abandono em que se encontravam, me foram entregues
para serem educados, compreendi a extensão da minha
responsabilidade. Na maioria, tinham contraído moléstias
desconhecidas e, em consequência, diversos vieram a falecer. Dois
sobreviveram, infelizmente os mais corrompidos. Mais bem-dotados em
astúcia que os irmãos, fugiam, à noite, do casarão e iam se
embriagar no botequim. O dono do bar se divertia vendo-os bêbados,
nada cobrava pela bebida que lhes oferecia. A cena, com o decorrer
dos meses, perdeu a graça e o botequineiro passou a negar-lhes
álcool. Para satisfazerem o vício, viram-se forçados a recorrer a
pequenos furtos.
No
entanto eu acreditava na possibilidade de reeducá-los e superar a
descrença de todos quanto ao sucesso da minha missão. Valia-me da
amizade com o delegado para retirá-los da cadeia, onde eram
recolhidos por motivos sempre repetidos: roubo, embriaguez, desordem.
Como
jamais tivesse ensinado dragões, consumia a maior parte do tempo
indagando pelo passado deles, família e métodos pedagógicos
seguidos em sua terra natal. Reduzido material colhi dos sucessivos
interrogatórios a que os submetia. Por terem vindo jovens para a
nossa cidade, lembravam-se confusamente de tudo, inclusive da morte
da mãe, que caíra num precipício, logo após a escalada da
primeira montanha. Para dificultar a minha tarefa, ajuntava-se à
debilidade da memória dos meus pupilos o seu constante mau humor,
proveniente das noites maldormidas e ressacas alcoólicas.
O
exercício continuado do magistério e a ausência de filhos
contribuíram para que eu lhes dispensasse uma assistência paternal.
Do mesmo modo, certa candura que fluía dos seus olhos obrigava-me a
relevar faltas que não perdoaria a outros discípulos.
Odorico,
o mais velho dos dragões, trouxe-me as maiores contrariedades.
Desastradamente simpático e malicioso, alvoroçava-se todo à
presença de saias. Por causa delas, e principalmente por uma
vagabundagem inata, fugia às aulas. As mulheres achavam-no engraçado
e houve uma que, apaixonada, largou o esposo para viver com ele.
Tudo
fiz para destruir a ligação pecaminosa e não logrei separá-los.
Enfrentavam-me com uma resistência surda, impenetrável. As minhas
palavras perdiam o sentido no caminho: Odorico sorria para Raquel e
esta, tranquilizada, debruçava-se novamente sobre a roupa que
lavava.
Pouco
tempo depois, ela foi encontrada chorando perto do corpo do amante.
Atribuíram sua morte a tiro fortuito, provavelmente de um caçador
de má pontaria. O olhar do marido desmentia a versão.
Com
o desaparecimento de Odorico, eu e minha mulher transferimos o nosso
carinho para o último dos dragões. Empenhamo-nos na sua recuperação
e conseguimos, com algum esforço, afastá-lo da bebida. Nenhum filho
talvez compensasse tanto o que conseguimos com amorosa persistência.
Ameno no trato, João aplicava-se aos estudos, ajudava Joana nos
arranjos domésticos, transportava as compras feitas no mercado.
Findo o jantar, ficávamos no alpendre a observar sua alegria,
brincando com os meninos da vizinhança. Carregava-os nas costas,
dava cambalhotas.
Regressando,
uma noite, da reunião mensal com os pais dos alunos, encontrei minha
mulher preocupada: João acabara de vomitar fogo. Também apreensivo,
compreendi que ele atingira a maioridade.
O
fato, longe de torná-lo temido, fez crescer a simpatia que gozava
entre as moças e rapazes do lugar. Só que, agora, demorava-se pouco
em casa. Vivia rodeado por grupos alegres, a reclamarem que lançasse
fogo. A admiração de uns, os presentes e convites de outros,
acendiam-lhe a vaidade. Nenhuma festa alcançava êxito sem a sua
presença. Mesmo o padre não dispensava o seu comparecimento às
barraquinhas do padroeiro da cidade.
Três
meses antes das grandes enchentes que assolaram o município, um
circo de cavalinhos movimentou o povoado, nos deslumbrou com audazes
acrobatas, engraçadíssimos palhaços, leões amestrados e um homem
que engolia brasas. Numa das derradeiras exibições do ilusionista,
alguns jovens interromperam o espetáculo aos gritos e palmas
ritmadas:
— Temos
coisa melhor! Temos coisa melhor!
Julgando
ser brincadeira dos moços, o anunciador aceitou o desafio:
— Que
venha essa coisa melhor!
Sob
o desapontamento do pessoal da companhia e os aplausos dos
espectadores, João desceu ao picadeiro e realizou sua costumeira
proeza de vomitar fogo.
Já
no dia seguinte, recebia várias propostas para trabalhar no circo.
Recusou-as, pois dificilmente algo substituiria o prestígio que
desfrutava na localidade. Alimentava ainda a pretensão de se eleger
prefeito municipal.
Isso
não se deu. Alguns dias após a partida dos saltimbancos,
verificou-se a fuga de João.
Várias
e imaginosas versões deram ao seu desaparecimento. Contavam que ele
se tomara de amores por uma das trapezistas, especialmente destacada
para seduzi-lo; que se iniciara em jogos de cartas e retomara o vício
da bebida.
Seja
qual for a razão, depois disso muitos dragões têm passado pelas
nossas estradas. E por mais que eu e meus alunos, postados na entrada
da cidade, insistamos que permaneçam entre nós, nenhuma resposta
recebemos. Formando longas filas, encaminham-se para outros lugares,
indiferentes aos nossos apelos.
Murilo
Rubião, in Obra completa
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