Para
Tuna Dwek e Nina Kahn
Na
primavera do ano passado fui visitar uma amiga em Dijon, aonde eu só
tinha ido uma vez, em 2002. Ao sair da estação de trem, reconheci-a
de imediato. O tempo não parecia ter sido tão cruel com ela como
fora comigo.
Na
tarde desse sábado, depois de uma conversa sobre os oito anos de uma
amizade mantida por cartões-postais, andamos pelas ruas do centro
histórico e visitamos o mercado, a catedral e outros edifícios que
sobreviveram às guerras. À noite, antes de voltar para o hotel, ela
perguntou o que eu ia fazer na manhã do domingo. Disse que ia alugar
um carro para visitar dois ou três vilarejos da Côte d’Or.
“Podemos
ir juntos antes do almoço”, ela sugeriu. “Às dez horas tenho um
encontro na casa de detenção. Queres ir comigo?”
Aceitei
o convite. E embora o cárcere seja sempre um suplício, fiquei
impressionado com a qualidade das instalações, com a limpeza do
refeitório e com a biblioteca. O projeto circular do presídio
parecia um pan-óptico inspirado no desenho de Jeremy Bentham, um
inglês que, no fim do século XVIII, desenvolveu esse conceito de
organização espacial, analisado por Foucault em seu livro Vigiar
e punir. As celas contíguas convergiam para um círculo central,
onde ficava o pátio. Do alto de uma torre, olhos invisíveis de
homens armados vigiavam os detentos.
Quando
minha amiga encerrou a conversa com um prisioneiro, eu disse que esse
presídio me fizera lembrar, por contraste, os presídios
brasileiros. Mencionei o antigo presídio São José, em Belém, que
eu visitara em 1976 e de onde eu tinha saído deprimido com as
humilhações a que eram submetidos os detentos. Um dos carcereiros
me contara, rindo, que despejava soda cáustica no chão das celas,
“só pra esfolar os pés dos animais”.
“Vi
o filme sobre o massacre do Carandiru”, ela disse. “É uma
história terrível. Não menos execrável é a impunidade dos
criminosos…”
Quando
saímos do presídio, ela me levou para ver uma exposição de fotos
que tinham sido tiradas em Dijon, em junho de 1944, logo após a
retirada dos nazistas dessa cidade. As imagens eram aterradoras:
edifícios destruídos, crianças órfãs, soldados mutilados,
franceses que haviam colaborado com os nazistas. Um desses traidores
fora linchado pela multidão e depois pendurado numa rua do centro da
cidade.
Ficamos
mais de uma hora na sala da galeria, observando imagens sombrias em
preto e branco, lendo textos que historiavam a ocupação da Borgonha
pelo Exército alemão. Não sabia que Klaus Barbie tinha
“trabalhado” em Dijon, pouco tempo antes de se tornar o carrasco
monstruoso de Lyon.
Minha
amiga disse que sua mãe perdera um irmão na guerra e que, meses
antes da ocupação de Dijon, seus futuros pais fugiram dessa cidade
e refugiaram-se em Marselha, onde se conheceram e casaram.
“Por
muito tempo”, ela disse, “meus pais não conseguiram dizer uma
única palavra sobre o passado, e eu cresci ouvindo histórias de
horror de outras pessoas, mas não deles. Eu e meu irmão nos
formamos em direito, e ele, quatro anos mais velho do que eu, dizia
que, desde a época do liceu, desconfiava do belo e edificante
discurso sobre os ‘valores ocidentais’.”
Saímos
da galeria e andamos devagar até a Rue de la Liberté; antes de
entrarmos no carro, ela apontou para um hotel grandioso e disse que o
alto comando nazista havia morado lá.
“Valores
como justiça e dignidade não são ocidentais ou orientais, nem
dependem de uma religião ou crença”, disse minha amiga. “São
apenas valores humanos, mas a história da humanidade é uma sucessão
interminável de calamidades e injustiças. Meus clientes são jovens
franceses e imigrantes, todos desempregados. Depois de conhecer a
vida deles, tento entender o nosso tempo, que não me orgulha nem um
pouco. A maioria das pessoas vê esses desempregados e drogados como
seres maléficos à sociedade. Eu os vejo como jovens sem qualquer
perspectiva de futuro, derrotados antes mesmo de entrar na dança da
vida. Há quatro anos meu irmão trabalha na defesa de prisioneiros
políticos africanos e palestinos. Vários deles são menores de
idade e sequer foram julgados. Ele, meu irmão, é mais pessimista do
que eu: só vê obscuridade no tempo presente. Agora vamos visitar
teus vilarejos da Côte d’Or, cher ami.”
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
Nenhum comentário:
Postar um comentário