Inclina,
Senhor, o teu ouvido, e ouve-me; porque eu sou desvalido e pobre.
(Salmos, LXXXV,
1)
Hoje
sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior.
Na
verdade, eu não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao
atingir certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do
tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se às
vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de
dissabores.
Tal
não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem pais, infância ou
juventude.
Um
dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da
Taberna Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me
surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante. Ele sim,
perplexo, me perguntou como podia ter feito aquilo.
O
que poderia responder, nessa situação, uma pessoa que não
encontrava a menor explicação para sua presença no mundo?
Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado e entediado.
Sem
meditar na resposta, ou fazer outras perguntas, ofereceu-me emprego e
passei daquele momento em diante a divertir a freguesia da casa com
os meus passes mágicos.
O
homem, entretanto, não gostou da minha prática de oferecer aos
espectadores almoços gratuitos, que eu extraía misteriosamente de
dentro do paletó. Considerando não ser dos melhores negócios
aumentar o número de fregueses sem o consequente acréscimo nos
lucros, apresentou-me ao empresário do Circo-Parque Andaluz, que,
posto a par das minhas habilidades, propôs contratar-me. Antes,
porém, aconselhou-o que se prevenisse contra os meus truques, pois
ninguém estranharia se me ocorresse a ideia de distribuir ingressos
graciosos para os espetáculos.
Contrariando
as previsões pessimistas do primeiro patrão, o meu comportamento
foi exemplar. As minhas apresentações em público não só
empolgaram multidões como deram fabulosos lucros aos donos da
companhia.
A
plateia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir
de casaca e cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do
chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo
no último número, em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um
jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades,
transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino
Nacional da Cochinchina. Os aplausos estrugiam de todos os lados, sob
o meu olhar distante.
O
gerente do circo, a me espreitar de longe, danava-se com a minha
indiferença pelas palmas da assistência. Notadamente se elas
partiam das criancinhas que me iam aplaudir nas matinês de domingo.
Por que me emocionar, se não me causavam pena aqueles rostos
inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o
amadurecimento do homem? Muito menos me ocorria odiá-las por terem
tudo que ambicionei e não tive: um nascimento e um passado.
Com
o crescimento da popularidade a minha vida tornou-se insuportável.
Às
vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo
desfilando na calçada, arrancava do bolso pombos, gaivotas,
maritacas. As pessoas que se encontravam nas imediações, julgando
intencional o meu gesto, rompiam em estridentes gargalhadas. Eu
olhava melancólico para o chão e resmungava contra o mundo e os
pássaros.
Se,
distraído, abria as mãos, delas escorregavam esquisitos objetos. A
ponto de me surpreender, certa vez, puxando da manga da camisa uma
figura, depois outra. Por fim, estava rodeado de figuras estranhas,
sem saber que destino lhes dar.
Nada
fazia. Olhava para os lados e implorava com os olhos por um socorro
que não poderia vir de parte alguma.
Situação
cruciante.
Quase
sempre, ao tirar o lenço para assoar o nariz, provocava o assombro
dos que estavam próximos, sacando um lençol do bolso. Se mexia na
gola do paletó, logo aparecia um urubu. Em outras ocasiões, indo
amarrar o cordão do sapato, das minhas calças deslizavam cobras.
Mulheres e crianças gritavam. Vinham guardas, ajuntavam-se curiosos,
um escândalo. Tinha de comparecer à delegacia e ouvir pacientemente
da autoridade policial ser proibido soltar serpentes nas vias
públicas.
Não
protestava. Tímido e humilde mencionava a minha condição de
mágico, reafirmando o propósito de não molestar ninguém.
Também,
à noite, em meio a um sono tranquilo, costumava acordar
sobressaltado: era um pássaro ruidoso que batera as asas ao sair do
meu ouvido.
Numa
dessas vezes, irritado, disposto a nunca mais fazer mágicas, mutilei
as mãos. Não adiantou. Ao primeiro movimento que fiz, elas
reapareceram novas e perfeitas nas pontas dos tocos de braço.
Acontecimento de desesperar qualquer pessoa, principalmente um mágico
enfastiado do ofício.
Urgia
encontrar solução para o meu desespero. Pensando bem, concluí que
somente a morte poria termo ao meu desconsolo.
Firme
no propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os
braços, aguardei o momento em que seria devorado por eles. Nenhum
mal me fizeram. Rodearam-me, farejaram minhas roupas, olharam a
paisagem, e se foram.
Na
manhã seguinte regressaram e se puseram, acintosos, diante de mim.
— O
que desejam, estúpidos animais?! — gritei, indignado.
Sacudiram
com tristeza as jubas e imploraram-me que os fizesse desaparecer:
— Este
mundo é tremendamente tedioso — concluíram.
Não
consegui refrear a raiva. Matei-os todos e me pus a devorá-los.
Esperava morrer, vítima de fatal indigestão.
Sofrimento
dos sofrimentos! Tive imensa dor de barriga e continuei a viver.
O
fracasso da tentativa multiplicou minha frustração. Afastei-me da
zona urbana e busquei a serra. Ao alcançar seu ponto mais alto, que
dominava escuro abismo, abandonei o corpo ao espaço.
Senti
apenas uma leve sensação da vizinhança da morte: logo me vi
amparado por um paraquedas. Com dificuldade, machucando-me nas
pedras, sujo e estropiado, consegui regressar à cidade, onde a minha
primeira providência foi adquirir uma pistola.
Em
casa, estendido na cama, levei a arma ao ouvido. Puxei o gatilho, à
espera do estampido, a dor da bala penetrando na minha cabeça.
Não
veio o disparo nem a morte: a máuser se transformara num lápis.
Uma
frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de
romper em definitivo com a vida. Ouvira de um homem triste que ser
funcionário público era suicidar-se aos poucos.
Não
me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio
que melhor me convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me
numa Secretaria de Estado.
Rolei
até o chão, soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não
encontrava meios de libertar-me da existência.
1930,
ano amargo. Foi mais longo que os posteriores à primeira
manifestação que tive da minha existência, ante o espelho da
Taberna Minhota.
Não
morri, conforme esperava. Maiores foram as minhas aflições, maior o
meu desconsolo.
Quando
era mágico, pouco lidava com os homens — o palco me distanciava
deles. Agora, obrigado a constante contato com meus semelhantes,
necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea que me causavam.
O
pior é que, sendo diminuto meu serviço, via-me na contingência de
permanecer à toa horas a fio. E o ócio levou-me à revolta contra a
falta de um passado. Por que somente eu, entre todos os que viviam
sob os meus olhos, não tinha alguma coisa para recordar? Os meus
dias flutuavam confusos, mesclados com pobres recordações, pequeno
saldo de três anos de vida.
O
amor que me veio por uma funcionária, vizinha de mesa de trabalho,
distraiu-me um pouco das minhas inquietações.
Distração
momentânea. Cedo retornou o desassossego, debatia-me em incertezas.
Como me declarar à minha colega? Se nunca fizera uma declaração de
amor e não tivera sequer uma experiência sentimental!
1931
entrou triste, com ameaças de demissões coletivas na Secretaria e a
recusa da datilógrafa em me aceitar. Ante o risco de ser demitido,
procurei acautelar meus interesses. (Não me importava o emprego.
Somente temia ficar longe da mulher que me rejeitara, mas cuja
presença me era agora indispensável.)
Fui
ao chefe da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado,
pois, tendo dez anos de casa, adquirira estabilidade no cargo.
Fitou-me
por algum tempo em silêncio. Depois, fechando a cara, disse que
estava atônito com meu cinismo. Jamais poderia esperar de alguém,
com um ano de trabalho, ter a ousadia de afirmar que tinha dez.
Para
lhe provar não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os
documentos que comprovavam a lisura do meu procedimento. Estupefato,
deles retirei apenas um papel amarrotado — fragmento de um poema
inspirado nos seios da datilógrafa.
Revolvi,
ansioso, todos os bolsos e nada encontrei.
Tive
que confessar minha derrota. Confiara demais na faculdade de fazer
mágicas e ela fora anulada pela burocracia.
Hoje,
sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a
pior das ocupações humanas. Falta-me o amor da companheira de
trabalho, a presença de amigos, o que me obriga a andar por lugares
solitários. Sou visto muitas vezes procurando retirar com os dedos,
do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga, por mais
que atente a vista.
Pensam
que estou louco, principalmente quando atiro ao ar essas pequeninas
coisas.
Tenho
a impressão de que é uma andorinha a se desvencilhar das minhas
mãos. Suspiro alto e fundo.
Não
me conforta a ilusão. Serve somente para aumentar o arrependimento
de não ter criado todo um mundo mágico.
Por
instantes, imagino como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços
vermelhos, azuis, brancos, verdes. Encher a noite com fogos de
artifício. Erguer o rosto para o céu e deixar que pelos meus lábios
saísse o arco-íris. Um arco-íris que cobrisse a Terra de um
extremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos brancos, das
meigas criancinhas.
Murilo
Rubião, in Obra completa
Nenhum comentário:
Postar um comentário