quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Fome

Se Deus não ficar bravo comigo, proponho um acréscimo às palavras de Jesus, no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os que têm fome porque serão fartos”. “Bem-aventurados os que estão fartos porque eles terão fome de novo!” Pois poderá haver desgraça maior que deixar de ter fome? Estar farto, não ter mais fome é o tédio, o enfado, a impotência. Quem não tem fome está condenado a não ter alegria.
Os filósofos trataram de determinar quais são as categorias fundamentais do pensamento, as mais famosas sendo as de Aristóteles e as de Kant. Mas o corpo do nenezinho, que nada sabe e que nenhuma palavra fala ou entende, já sabe que as coisas do mundo se dividem em duas categorias apenas. Primeira, a classe das coisas gostosas que devem ser degustadas e engolidas. Segunda, a classe das coisas que não são gostosas e que devem ser cuspidas ou vomitadas. Essas são as duas categorias fundamentais da sapiência.
A criança brinca com o seio. Seio é mais que leite. É brinquedo. Chupar dá prazer: início dos nossos impulsos antropofágicos! Esse desejo infantil vai nos acompanhar pelo resto da vida.
Os poetas são cozinheiros pretensiosos que se esforçam por transformar o universo em banquete.
Amor e fome são a mesma coisa. Nada mais triste para uma cozinheira que o convidado sem apetite. “Não tenho fome.” Ou aquele que diz: “ Já estou satisfeito”. Quem diz “não tenho fome” está dizendo “não quero mais fazer amor com você”.
Diz o ditado que “o melhor da festa é esperar por ela”. Há prazeres que moram no tempo da espera. Num verso alegre, sem a tristeza do verso do Chico, posso dizer que “saudade é fazer comida para o filho que vai chegar...”. Ai que saudade boa! É prazeroso preparar o prazer.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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