Para
José Carlos Abbate
Nesta
sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis
escreventes dividiram entre si o bom-senso do mundo, aplicando-se em
ideias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se
pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da
qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído),
largue tudo de repente sob os olhares à sua volta, componha uma cara
de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os
tais escribas mais severos, dê um largo “ciao” ao trabalho do
dia, assim como quem se despede da vida, surpreenda pouco mais tarde,
com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa
ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como
era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos,
deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se
instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto,
libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do
corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em
vestes mínimas, quem sabe até em pelo, mas sem ferir o pudor (o seu
pudor, bem entendido), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade
provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista
incerto, assome depois com sua nudez no trampolim do patamar e avance
dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez,
embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances.
Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto
(coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão
enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado,
circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre
com a mesma cara de louco ainda não precipitado), e se achegue
depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada
entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na
vida, e vá fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os
olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze
a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.
Raduan
Nassar, in Os
cem melhores contos brasileiros do século
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