Gregory Peck como Capitão Ahab
Por
vários dias depois da partida de Nantucket, não se viu o Capitão
Ahab acima das escotilhas. Os imediatos se revezavam regularmente a
cada quarto, e por nada se percebia o que pudesse desmentir que
fossem eles os comandantes do navio; somente às vezes saíam da
cabine com ordens tão inesperadas e peremptórias que, no final das
contas, ficava evidente que comandavam por delegação de outrem.
Sim, seu supremo senhor e ditador estava a bordo, embora até aquele
momento não tivesse sido visto por olhos que não fossem chamados a
penetrar no sacro refúgio da cabine.
Todas
as vezes que eu subia ao convés depois dos meus turnos de vigília
embaixo, olhava instintivamente para a popa para ver se havia algum
rosto novo; pois minha vaga inquietude inicial em relação ao
capitão desconhecido se tornava, no isolamento do mar, quase uma
agitação. E isso, às vezes, era estranhamente agravado pelas
incoerências diabólicas do miserável Elijah que me voltavam
involuntariamente, com uma energia sutil que nunca antes havia
concebido. Mas conseguia resistir com dificuldade a esses presságios,
embora pudesse até rir das extravagâncias solenes daquele esquisito
profeta das docas, quando estava com uma disposição diferente. Mas,
fosse o que fosse, apreensão ou inquietação – por assim dizer –
o que eu sentia, quando olhava à minha volta no navio, parecia-me
absurdo alimentar tais emoções. Pois embora os arpoadores, junto
com grande parte da tripulação, fossem o grupo mais selvagem, pagão
e heterogêneo de todas as tripulações dos pacíficos navios
mercantes que minhas experiências anteriores me fizeram conhecer, eu
atribuía esse humor – e com justiça – à selvagem singularidade
da natureza daquela primitiva vocação escandinava com a qual eu
havia, tão de peito aberto, embarcado. Mas o aspecto dos três
principais oficiais do navio, dos imediatos, contribuía
especialmente para apaziguar essas apreensões sombrias e para
incutir confiança e alegria em todas as instâncias da viagem. Três
oficiais e homens do mar melhores e mais competentes, cada um a seu
modo, não se encontravam facilmente e eram todos norte-americanos;
um de Nantucket, um de Martha’s Vineyard e outro de Cape Cod. Ora,
como era Natal quando o navio zarpou do porto, por algum tempo
suportamos um frio polar, embora estivéssemos fugindo em direção
ao sul e deixássemos, a cada grau e minuto de latitude que
avançávamos, aquele inverno impiedoso e aquela temperatura
intolerável para trás. Foi numa dessas manhãs de transição,
menos ameaçadora, mas ainda cinzenta e escura, com um vento
favorável e o navio cortando a água como que com saltos vingativos
e rapidez melancólica, que eu subi ao convés para o turno da
vigília matinal, e, ao levantar os olhos para as grades da popa,
senti calafrios agourentos percorrendo meu corpo. A realidade tinha
superado a apreensão; o Capitão Ahab estava em seu tombadilho.
Não
se percebia nele nenhum sinal de enfermidade física comum, e nem de
convalescença. Tinha o aspecto de um homem retirado da fogueira,
depois de o fogo devastar todos os membros, sem os haver consumido,
nem eliminado uma só partícula de sua compacta e velha força. Toda
a sua figura alta e portentosa parecia feita de um bronze sólido,
moldada em uma forma impecável, como o Perseu, de Cellini.
Palmilhando seu rosto desde entre os cabelos grisalhos, e seguindo
por uma das faces queimadas e pelo pescoço, até desaparecer em suas
roupas, via-se uma fina marca em forma de risco, extremamente branca.
A cicatriz perpendicular parecia aquela que às vezes se observa no
tronco alto e ereto de uma grande árvore, quando um raio cai do alto
violentamente sem derrubar um único galho, mas tiralhe a casca e faz
uma ranhura de cima a baixo antes de chegar ao solo, deixando a
árvore verde com vida, porém marcada. Se aquela marca era de
nascença ou se era a cicatriz de uma ferida grave, não se sabe ao
certo. Por algum acordo tácito, pouca ou nenhuma alusão se fez ao
assunto durante a viagem, especialmente entre os oficiais. Mas certa
vez, o chefe de Tashtego, um velho tripulante índio de Gay Head,
afirmou auspiciosamente que Ahab não tinha aquela cicatriz quando
completara quarenta anos, e que isso lhe sucedera não em
consequência de uma briga entre mortais, mas numa luta contra os
elementos do mar. Mas essa alusão precipitada foi desmentida pelas
insinuações de um grisalho nativo de Man, um velho que parecia
recém-saído do túmulo e que nunca tinha visto o Capitão Ahab
antes de sair de Nantucket. Não obstante, as antigas tradições do
mar e as credulidades imemoráveis investiam esse velho de Man com
poderes sobrenaturais de discernimento. De modo que nenhum marinheiro
branco ousou contradizê-lo quando afirmou que, se alguma vez o
Capitão Ahab fosse normalmente sepultado – o que era muito pouco
provável, murmurou –, quem quer que prestasse esse último serviço
ao defunto veria aquele sinal de nascença da ponta da cabeça à
sola dos pés.
O
aspecto tenebroso de Ahab me afetou tão profundamente, com aquela
marca branca que o riscava, que por alguns instantes mal percebi que
grande parte daquela tenebrosidade se devia à bárbara perna branca
sobre a qual se apoiava. Tinham me dito anteriormente que essa perna
de marfim havia sido feita no mar, de osso polido da mandíbula de um
cachalote. “Sim, ele foi desmastreado perto do Japão”, disse
certa vez o velho índio de Gay Head, “mas, como um navio
desmastreado, colocou outro mastro sem esperar pelo regresso à
pátria. Ele tem uma coleção delas.”
Impressionou-me
a postura singular que mantinha. No chão, de cada lado do tombadilho
do Pequod, perto dos brandais da mezena, havia um buraco feito
por uma verruma, de mais ou menos meia polegada. Sua perna de osso se
firmava naquele buraco; com um braço levantado segurando um brandal,
o Capitão Ahab mantinha-se ereto, olhando para a frente, para além
da proa do navio, que arfava sem cessar. Havia uma infinidade de
firmeza inabalável, uma vontade determinada e indomável na
dedicação fixa, intrépida e atrevida daquele olhar. Não disse uma
palavra; nem seus oficiais lhe disseram coisa alguma; embora, pela
miudeza de seus gestos e expressões, demonstrassem a consciência
perturbada, se não dolorosa, de se encontrar sob o incômodo olhar
do senhor. E não apenas isso, mas o soturno Ahab estava diante deles
com uma crucificação em seu rosto; com toda a dignidade despótica,
régia e inominável, de um enorme infortúnio.
Não
muito depois de sua primeira visita ao ar livre, ele se retirou para
a cabine. Mas depois daquela manhã a tripulação o avistava todos
os dias; ora de pé, apoiado em seu buraco, ora sentado num banco de
marfim que era seu; ora andando pesadamente pelo convés. À medida
que o céu desanuviou, de fato, também ele deixou de se comportar
como um recluso; como se nada o tivesse mantido isolado desde que o
navio zarpara a não ser o frio gelado do mar. E, pouco a pouco,
sucedeu que ele estava quase sempre ao ar livre; mas, por enquanto,
por tudo o que nos disse ou que o vimos fazer no convés ensolarado,
ele parecia tão desnecessário naquele lugar como um outro mastro.
Mas aqui o Pequod fazia apenas uma travessia; não um cruzeiro
regular; quase todos os preparativos para a pesca de baleias que
necessitavam de supervisão eram feitos pelos oficiais; por isso
havia pouco ou nada que ocupasse ou estimulasse Ahab no momento e,
assim, afugentasse, pelo menos nesse intervalo, as nuvens que, camada
sobre camada, se acumulavam sobre seu semblante, uma vez que as
nuvens sempre escolhem os picos mais altos para se acumular.
Todavia,
dentro em pouco a persuasão calorosa de um tempo agradável de
férias a que fomos chegando pareceu atraí-lo, como que por encanto,
para longe de seus humores. Da mesma forma que as duas dançarinas de
faces rosadas, Abril e Maio, voltam para os bosques invernais e
misantrópicos; e mesmo um carvalho velho, áspero, sem folhas e
fulminado por um raio pode gerar alguns brotos verdes para dar as
boas-vindas às alegres visitantes; assim também Ahab, afinal,
respondeu à sedução daquela atmosfera feminil. Por mais de uma vez
deixou despontar uma leve florescência no olhar que, em qualquer
outro homem, logo teria desabrochado num sorriso.
Herman
Melville, in Moby Dick
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