sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Ahab

Gregory Peck como Capitão Ahab 

Por vários dias depois da partida de Nantucket, não se viu o Capitão Ahab acima das escotilhas. Os imediatos se revezavam regularmente a cada quarto, e por nada se percebia o que pudesse desmentir que fossem eles os comandantes do navio; somente às vezes saíam da cabine com ordens tão inesperadas e peremptórias que, no final das contas, ficava evidente que comandavam por delegação de outrem. Sim, seu supremo senhor e ditador estava a bordo, embora até aquele momento não tivesse sido visto por olhos que não fossem chamados a penetrar no sacro refúgio da cabine.
Todas as vezes que eu subia ao convés depois dos meus turnos de vigília embaixo, olhava instintivamente para a popa para ver se havia algum rosto novo; pois minha vaga inquietude inicial em relação ao capitão desconhecido se tornava, no isolamento do mar, quase uma agitação. E isso, às vezes, era estranhamente agravado pelas incoerências diabólicas do miserável Elijah que me voltavam involuntariamente, com uma energia sutil que nunca antes havia concebido. Mas conseguia resistir com dificuldade a esses presságios, embora pudesse até rir das extravagâncias solenes daquele esquisito profeta das docas, quando estava com uma disposição diferente. Mas, fosse o que fosse, apreensão ou inquietação – por assim dizer – o que eu sentia, quando olhava à minha volta no navio, parecia-me absurdo alimentar tais emoções. Pois embora os arpoadores, junto com grande parte da tripulação, fossem o grupo mais selvagem, pagão e heterogêneo de todas as tripulações dos pacíficos navios mercantes que minhas experiências anteriores me fizeram conhecer, eu atribuía esse humor – e com justiça – à selvagem singularidade da natureza daquela primitiva vocação escandinava com a qual eu havia, tão de peito aberto, embarcado. Mas o aspecto dos três principais oficiais do navio, dos imediatos, contribuía especialmente para apaziguar essas apreensões sombrias e para incutir confiança e alegria em todas as instâncias da viagem. Três oficiais e homens do mar melhores e mais competentes, cada um a seu modo, não se encontravam facilmente e eram todos norte-americanos; um de Nantucket, um de Martha’s Vineyard e outro de Cape Cod. Ora, como era Natal quando o navio zarpou do porto, por algum tempo suportamos um frio polar, embora estivéssemos fugindo em direção ao sul e deixássemos, a cada grau e minuto de latitude que avançávamos, aquele inverno impiedoso e aquela temperatura intolerável para trás. Foi numa dessas manhãs de transição, menos ameaçadora, mas ainda cinzenta e escura, com um vento favorável e o navio cortando a água como que com saltos vingativos e rapidez melancólica, que eu subi ao convés para o turno da vigília matinal, e, ao levantar os olhos para as grades da popa, senti calafrios agourentos percorrendo meu corpo. A realidade tinha superado a apreensão; o Capitão Ahab estava em seu tombadilho.
Não se percebia nele nenhum sinal de enfermidade física comum, e nem de convalescença. Tinha o aspecto de um homem retirado da fogueira, depois de o fogo devastar todos os membros, sem os haver consumido, nem eliminado uma só partícula de sua compacta e velha força. Toda a sua figura alta e portentosa parecia feita de um bronze sólido, moldada em uma forma impecável, como o Perseu, de Cellini. Palmilhando seu rosto desde entre os cabelos grisalhos, e seguindo por uma das faces queimadas e pelo pescoço, até desaparecer em suas roupas, via-se uma fina marca em forma de risco, extremamente branca. A cicatriz perpendicular parecia aquela que às vezes se observa no tronco alto e ereto de uma grande árvore, quando um raio cai do alto violentamente sem derrubar um único galho, mas tiralhe a casca e faz uma ranhura de cima a baixo antes de chegar ao solo, deixando a árvore verde com vida, porém marcada. Se aquela marca era de nascença ou se era a cicatriz de uma ferida grave, não se sabe ao certo. Por algum acordo tácito, pouca ou nenhuma alusão se fez ao assunto durante a viagem, especialmente entre os oficiais. Mas certa vez, o chefe de Tashtego, um velho tripulante índio de Gay Head, afirmou auspiciosamente que Ahab não tinha aquela cicatriz quando completara quarenta anos, e que isso lhe sucedera não em consequência de uma briga entre mortais, mas numa luta contra os elementos do mar. Mas essa alusão precipitada foi desmentida pelas insinuações de um grisalho nativo de Man, um velho que parecia recém-saído do túmulo e que nunca tinha visto o Capitão Ahab antes de sair de Nantucket. Não obstante, as antigas tradições do mar e as credulidades imemoráveis investiam esse velho de Man com poderes sobrenaturais de discernimento. De modo que nenhum marinheiro branco ousou contradizê-lo quando afirmou que, se alguma vez o Capitão Ahab fosse normalmente sepultado – o que era muito pouco provável, murmurou –, quem quer que prestasse esse último serviço ao defunto veria aquele sinal de nascença da ponta da cabeça à sola dos pés.
O aspecto tenebroso de Ahab me afetou tão profundamente, com aquela marca branca que o riscava, que por alguns instantes mal percebi que grande parte daquela tenebrosidade se devia à bárbara perna branca sobre a qual se apoiava. Tinham me dito anteriormente que essa perna de marfim havia sido feita no mar, de osso polido da mandíbula de um cachalote. “Sim, ele foi desmastreado perto do Japão”, disse certa vez o velho índio de Gay Head, “mas, como um navio desmastreado, colocou outro mastro sem esperar pelo regresso à pátria. Ele tem uma coleção delas.”
Impressionou-me a postura singular que mantinha. No chão, de cada lado do tombadilho do Pequod, perto dos brandais da mezena, havia um buraco feito por uma verruma, de mais ou menos meia polegada. Sua perna de osso se firmava naquele buraco; com um braço levantado segurando um brandal, o Capitão Ahab mantinha-se ereto, olhando para a frente, para além da proa do navio, que arfava sem cessar. Havia uma infinidade de firmeza inabalável, uma vontade determinada e indomável na dedicação fixa, intrépida e atrevida daquele olhar. Não disse uma palavra; nem seus oficiais lhe disseram coisa alguma; embora, pela miudeza de seus gestos e expressões, demonstrassem a consciência perturbada, se não dolorosa, de se encontrar sob o incômodo olhar do senhor. E não apenas isso, mas o soturno Ahab estava diante deles com uma crucificação em seu rosto; com toda a dignidade despótica, régia e inominável, de um enorme infortúnio.
Não muito depois de sua primeira visita ao ar livre, ele se retirou para a cabine. Mas depois daquela manhã a tripulação o avistava todos os dias; ora de pé, apoiado em seu buraco, ora sentado num banco de marfim que era seu; ora andando pesadamente pelo convés. À medida que o céu desanuviou, de fato, também ele deixou de se comportar como um recluso; como se nada o tivesse mantido isolado desde que o navio zarpara a não ser o frio gelado do mar. E, pouco a pouco, sucedeu que ele estava quase sempre ao ar livre; mas, por enquanto, por tudo o que nos disse ou que o vimos fazer no convés ensolarado, ele parecia tão desnecessário naquele lugar como um outro mastro. Mas aqui o Pequod fazia apenas uma travessia; não um cruzeiro regular; quase todos os preparativos para a pesca de baleias que necessitavam de supervisão eram feitos pelos oficiais; por isso havia pouco ou nada que ocupasse ou estimulasse Ahab no momento e, assim, afugentasse, pelo menos nesse intervalo, as nuvens que, camada sobre camada, se acumulavam sobre seu semblante, uma vez que as nuvens sempre escolhem os picos mais altos para se acumular.
Todavia, dentro em pouco a persuasão calorosa de um tempo agradável de férias a que fomos chegando pareceu atraí-lo, como que por encanto, para longe de seus humores. Da mesma forma que as duas dançarinas de faces rosadas, Abril e Maio, voltam para os bosques invernais e misantrópicos; e mesmo um carvalho velho, áspero, sem folhas e fulminado por um raio pode gerar alguns brotos verdes para dar as boas-vindas às alegres visitantes; assim também Ahab, afinal, respondeu à sedução daquela atmosfera feminil. Por mais de uma vez deixou despontar uma leve florescência no olhar que, em qualquer outro homem, logo teria desabrochado num sorriso.
Herman Melville, in Moby Dick

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