quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Aconteceu em Londres

Palácio de Buckingham

Que é isso? Que é que o senhor está fazendo aqui?
Perdão, Majestade, eu…
Dispenso explicações. Retire-se.
Vossa Majestade me fez uma pergunta, e eu, como súdito obediente, devo responder antes de me retirar.
Tem razão. Mas o que foi mesmo que eu perguntei? O senhor me pregou um susto!
Era o que eu menos desejava nesta vida. Preferia não acordá-la, juro.
Mas acordou, e isso não se faz. Em todo caso, diga como chegou até aqui.
Vossa Majestade quer que eu responda primeiro à segunda pergunta ou dê preferência à primeira, pela ordem natural das coisas?
Primeiro que tudo, exijo que o senhor saia imediatamente da minha cama, onde estranho nenhum jamais ousou sentar.
Desculpe, mas estou sentado só na beiradinha. Preciso tomar fôlego, e no quarto de Vossa Majestade, com grande pesar meu, não tem sequer uma poltrona.
É verdade. Não sei o que fizeram da minha poltrona. Ficaram de estofá-la de novo, faz duas semanas, e até hoje nada. Preciso falar ao Philip sobre essa e outras coisinhas. Bem, responda como achar melhor.
Posso continuar sentado na cama?
Que remédio. Admito que o senhor não queira sentar-se no chão. Mas preferia que não estivesse nem sentado nem em pé. Que fosse embora.
Então vou começar, mas acabo de refletir que a ordem natural das coisas recomenda que eu responda primeiro à segunda pergunta, a saber, como foi que cheguei aqui. Só depois disso é que tem cabimento a explicação do que estou fazendo aqui. Cada coisa em seu tempo, e todo assunto, para ser bem considerado, deve ser decomposto em partes, ordenadamente.
O senhor me parece bastante cartesiano. Vamos lá.
Então lhe direi que cheguei aqui pulando o muro do palácio, porque no portão não me deixariam entrar. Eles barram tudo.
O muro tem três metros e cinquenta centímetros de altura, e está recoberto de cacos de vidro e cabeças de prego. Admira que o senhor o tenha galgado.
Com a devida licença de Vossa Majestade, ouso dizer que não sou desprovido de preparo físico e de habilidade natural.
Estou vendo. E depois?
Depois, subi pela parede, agarrando-me à calha, que, Vossa Majestade não leve a mal, está um tanto enferrujada e merece ser substituída.
Falarei também a meu marido. Obrigada pela colaboração.
Não tem de quê. Mas a parte da calha foi a mais difícil. Teve momentos em que eu receei cair no cimento, e Vossa Majestade pode avaliar as consequências de uma queda nessas condições, sem falar no incômodo que eu daria à guarda do palácio.
Continue.
Daí por diante foi simples, pois Vossa Majestade é bastante cautelosa para não fechar por dentro a porta do quarto de dormir. Ninguém sabe o que pode acontecer quando se tem uma indisposição, por exemplo, e até um desmaio, e o pessoal de casa fica impedido de prestar socorro. Então, eis-me aqui.
Espero que não tenha vindo para socorrer-me de qualquer coisa. Eu dormia tranquilamente.
É verdade. Mas que sono leve tem Vossa Majestade! Não fiz o menor ruído, e mesmo assim a despertei. Lamento muito. Bem, que é que estou fazendo aqui? Nada.
Como assim? O senhor escala o muro do palácio, sobe pela calha, atravessa corredores e salas, chega ao meu quarto, senta-se na minha cama e não está fazendo absolutamente nada, depois de fazer tantas coisas?
Exatamente, Majestade. A não ser este diálogo que empreendemos por iniciativa sua, não erro ao afirmar que não estou fazendo coisa alguma em sua câmara real.
Fale a verdade. Não pretendia cometer um atentado?
Jamais. Venero a minha rainha e estou satisfeito com a Monarquia, que ainda agora, nas Malvinas, deu boa conta do recado.
Eu ficaria desolada se soubesse que o senhor veio aqui como ladrão.
Majestade, estou desempregado mas sou um homem limpo.
Então, o que deseja, afinal de contas?
Um cigarro. Estou sem dinheiro para comprar sequer um maço, e, perambulando em Saint James, com vontade imperativa de dar umas tragadas…
Confundiu Buckingham com uma tabacaria.
Longe de mim um absurdo desses, Majestade. Além do mais, a esta hora todas as tabacarias de Londres estão fechadas. Pensei apenas que a casa da rainha deve ter cigarros excelentes.
Pois olhe: neste quarto não há nem cinzeiro. Deixei de fumar em virtude de promessa para a Grã-Bretanha não ser humilhada naquela briguinha do Atlântico Sul.
Que pena.
Mas vou lhe satisfazer o desejo. Sei o que é um fumante inveterado, impedido de tirar uma fumaça. Por favor, toque a campainha para chamar o criado. Não posso sair da cama nesses trajes.
Perfeitamente, Majestade. Agradeço-lhe de coração.
Trrrim. Chega o criado.
John, conduza este senhor até a rua, mas dê-lhe antes um maço de cigarros. E mande chamar imediatamente aqui o sr. Whitelaw. Quero conversar com ele sobre a altura do muro do palácio e a conservação das calhas.
Carlos Drummond de Andrade, in Boca de Luar

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