Palácio de Buckingham
— Que
é isso? Que é que o senhor está fazendo aqui?
—
Perdão,
Majestade, eu…
—
Dispenso
explicações. Retire-se.
— Vossa
Majestade me fez uma pergunta, e eu, como súdito obediente, devo
responder antes de me retirar.
— Tem
razão. Mas o que foi mesmo que eu perguntei? O senhor me pregou um
susto!
— Era
o que eu menos desejava nesta vida. Preferia não acordá-la, juro.
— Mas
acordou, e isso não se faz. Em todo caso, diga como chegou até
aqui.
— Vossa
Majestade quer que eu responda primeiro à segunda pergunta ou dê
preferência à primeira, pela ordem natural das coisas?
—
Primeiro
que tudo, exijo que o senhor saia imediatamente da minha cama, onde
estranho nenhum jamais ousou sentar.
—
Desculpe,
mas estou sentado só na beiradinha. Preciso tomar fôlego, e no
quarto de Vossa Majestade, com grande pesar meu, não tem sequer uma
poltrona.
— É
verdade. Não sei o que fizeram da minha poltrona. Ficaram de
estofá-la de novo, faz duas semanas, e até hoje nada. Preciso falar
ao Philip sobre essa e outras coisinhas. Bem, responda como achar
melhor.
— Posso
continuar sentado na cama?
— Que
remédio. Admito que o senhor não queira sentar-se no chão. Mas
preferia que não estivesse nem sentado nem em pé. Que fosse embora.
— Então
vou começar, mas acabo de refletir que a ordem natural das coisas
recomenda que eu responda primeiro à segunda pergunta, a saber, como
foi que cheguei aqui. Só depois disso é que tem cabimento a
explicação do que estou fazendo aqui. Cada coisa em seu tempo, e
todo assunto, para ser bem considerado, deve ser decomposto em
partes, ordenadamente.
— O
senhor me parece bastante cartesiano. Vamos lá.
— Então
lhe direi que cheguei aqui pulando o muro do palácio, porque no
portão não me deixariam entrar. Eles barram tudo.
— O
muro tem três metros e cinquenta centímetros de altura, e está
recoberto de cacos de vidro e cabeças de prego. Admira que o senhor
o tenha galgado.
— Com
a devida licença de Vossa Majestade, ouso dizer que não sou
desprovido de preparo físico e de habilidade natural.
— Estou
vendo. E depois?
—
Depois,
subi pela parede, agarrando-me à calha, que, Vossa Majestade não
leve a mal, está um tanto enferrujada e merece ser substituída.
—
Falarei
também a meu marido. Obrigada pela colaboração.
— Não
tem de quê. Mas a parte da calha foi a mais difícil. Teve momentos
em que eu receei cair no cimento, e Vossa Majestade pode avaliar as
consequências de uma queda nessas condições, sem falar no incômodo
que eu daria à guarda do palácio.
—
Continue.
— Daí
por diante foi simples, pois Vossa Majestade é bastante cautelosa
para não fechar por dentro a porta do quarto de dormir. Ninguém
sabe o que pode acontecer quando se tem uma indisposição, por
exemplo, e até um desmaio, e o pessoal de casa fica impedido de
prestar socorro. Então, eis-me aqui.
—
Espero
que não tenha vindo para socorrer-me de qualquer coisa. Eu dormia
tranquilamente.
— É
verdade. Mas que sono leve tem Vossa Majestade! Não fiz o menor
ruído, e mesmo assim a despertei. Lamento muito. Bem, que é que
estou fazendo aqui? Nada.
— Como
assim? O senhor escala o muro do palácio, sobe pela calha, atravessa
corredores e salas, chega ao meu quarto, senta-se na minha cama e não
está fazendo absolutamente nada, depois de fazer tantas coisas?
—
Exatamente,
Majestade. A não ser este diálogo que empreendemos por iniciativa
sua, não erro ao afirmar que não estou fazendo coisa alguma em sua
câmara real.
— Fale
a verdade. Não pretendia cometer um atentado?
—
Jamais.
Venero a minha rainha e estou satisfeito com a Monarquia, que ainda
agora, nas Malvinas, deu boa conta do recado.
— Eu
ficaria desolada se soubesse que o senhor veio aqui como ladrão.
—
Majestade,
estou desempregado mas sou um homem limpo.
—
Então,
o que deseja, afinal de contas?
— Um
cigarro. Estou sem dinheiro para comprar sequer um maço, e,
perambulando em Saint James, com vontade imperativa de dar umas
tragadas…
—
Confundiu
Buckingham com uma tabacaria.
— Longe
de mim um absurdo desses, Majestade. Além do mais, a esta hora todas
as tabacarias de Londres estão fechadas. Pensei apenas que a casa da
rainha deve ter cigarros excelentes.
— Pois
olhe: neste quarto não há nem cinzeiro. Deixei de fumar em virtude
de promessa para a Grã-Bretanha não ser humilhada naquela briguinha
do Atlântico Sul.
— Que
pena.
— Mas
vou lhe satisfazer o desejo. Sei o que é um fumante inveterado,
impedido de tirar uma fumaça. Por favor, toque a campainha para
chamar o criado. Não posso sair da cama nesses trajes.
—
Perfeitamente,
Majestade. Agradeço-lhe de coração.
Trrrim.
Chega o criado.
— John,
conduza este senhor até a rua, mas dê-lhe antes um maço de
cigarros. E mande chamar imediatamente aqui o sr. Whitelaw. Quero
conversar com ele sobre a altura do muro do palácio e a conservação
das calhas.
Carlos
Drummond de Andrade, in Boca de Luar
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