A
literatura é um rasgão na placidez do mundo. Olhar enviesado, que
nos pega pelas costas e de mau jeito, ela se impõe como um golpe e
nos agita. Pode a literatura dar conta do mundo? Lendo Manuel
Bandeira, deparo com uma de suas traduções do poeta espanhol Juan
Ramón Jiménez, que me ajuda a pensar: “Colhi-te? Não sei/ Se te
colhi, pluma suavíssima/ Ou se colhi tua sombra”. Nunca chegamos
ao que queremos. O mundo se assemelha a esses espelhos sinuosos que,
nas feiras e nos circos, nos oferecem sucessivas imagens deformadas.
Você se mira naquelas sombras, na esperança, tola, de uma
convicção. À saída, não sabe mais quem é.
Ideias
sobre os limites fluidos do ser me vêm enquanto leio O outro,
novela do alemão Bernhard Schlink (Record, tradução de Kristina
Michahelles). Um livro simples que – com a delicadeza cruel dos
anestesistas, que nos embalam em sono profundo só para que nos
retalhem – arranca a cortina de ilusões em que nos protegemos.
Schlink (que é também o autor de O leitor, livro que Stephen
Daldry transformou em um filme premiado) nos pega de jeito.
Acredita-se, em geral, que ele seja só um inofensivo autor de best
sellers. Você se deixa levar por seus relatos, neles se aconchega,
como se abraçasse um animalzinho de estimação. Ao final, porém, o
livro fica cravado em seu peito como uma adaga.
O
outro é a história de Bengt, um músico que, depois de perder a
mulher, Lisa, vitimada por um câncer, faz uma descoberta cruel:
durante longos anos, sem que ele jamais suspeitasse, a esposa o
traiu. A carta de Rolf, o Outro, lhe chega em meio aos cartões de
condolências. Destina-se não a ele, o viúvo, mas a Lisa, a morta.
Julgando-a viva, Rolf lhe escreve para falar do “pecado da vida não
vivida, do amor não amado”. Implora que volte a seus braços.
Bengt
lê a carta do Outro com desespero. O ciúme o fere. Mais dolorosa,
porém, é a ideia de que, provavelmente, não conhecia a mulher que
amou. “Como saber se ela fora uma para ele e outra para o Outro?”
– ele se pergunta. Não se interessa por Rolf, mas pelo lugar que o
Outro ocupou na vida de sua mulher. Lugar não só de um terceiro,
mas a partir do qual uma nova imagem de Lisa – agora vista como uma
estranha, ela também Outra – se descortina. Ao lado do Outro, Lisa
era, por certo, a mesma mulher que ele sempre amou e a quem, com
tanto carinho, ajudou a morrer. Mas era, ao mesmo tempo, uma Outra,
uma desconhecida. A imagem da amada se divide. O que é pior: Lisa
ter sido Outra ao lado do Outro ou ter sido a mesma? Quem, afinal,
foi Lisa: a mulher que o amou ou a mulher que o traiu?
Bengt
controla a raiva e, friamente, escreve ao Outro comunicando a morte
da esposa. Quer dar a questão por encerrada. São apenas três
frases secas: “Sua carta chegou. Mas já não chegou para quem você
a escreveu. A Lisa que você conheceu e amou morreu”. Em vez de
tomá-la como um comunicado fúnebre, porém, o Outro a lê como um
pedido de ruptura, que a amada assina. Como são pérfidas as
palavras! A carta – a mesma carta –, dependendo de quem a lê, se
torna outra carta. As três linhas escritas por Bengt imitam a
consistência fluida da literatura, massa pegajosa que, na mente de
cada leitor, toma uma forma. Volto à sentença genial de Roa Bastos:
“Um livro só existe na cabeça do leitor”. Para cada um de nós,
um mesmo livro é, sempre, outro livro.
Um
desesperado Bengt responde a carta em nome de sua mulher –
“ressuscitando-a”. Ao ocupar o papel da morta, ele experimenta o
prazer perverso de transformar Rolf em seu fantoche. Passa a lidar,
assim, com um segundo Rolf: não mais o homem que Lisa amou, mas o
tolo que ele, por vingança, manipula. Faz, assim, do Outro um
terceiro. A partir daí, Bengt se entrega a um jogo sofisticado, no
qual as regras variam de acordo com quem mexe as peças. Não é
outra coisa a literatura senão um mundo arbitrário que, nas mãos
de cada escritor, se transforma em algo distinto. A literatura é uma
valise dentro da qual o escritor, iludido a respeito de seu poder,
arruma as palavras. Mas só o leitor – cada leitor – lhes confere
sentido.
A
partir daí, Bengt passa a viver para o Outro, que, no entanto, já
não é o Mesmo que Lisa conheceu. Que desassossego! O mundo
sacoleja: as posições se desfiguram, os horizontes quebram. Com as
cartas escritas em nome de Lisa, um temerário Bengt não só se
intromete no amor secreto entre ela e o Outro, como inventa uma
maneira (suicida, pois faz dele uma carta fora do baralho) de
ressuscitar a mulher. O jogo se desenrola até o momento-limite em
que Bengt, não suportando mais o solo quebradiço em que avança,
decide procurar o Outro, Rolf em pessoa, para encará-lo. Acredita
que, defrontando a verdade, pisará, enfim, em terra firme.
A
verdade, porém, é deplorável: Rolf não passa de um pobre
fanfarrão, um miserável janota. A verdade é uma mentira. O que
Lisa via, afinal, naquele imbecil? Bengt abandona, então, a busca da
verdade e a substitui – para usar uma expressão do artista russo
Wassily Kandinsky – pela invenção de uma “olhada interior”.
Abdica da nitidez e da perfeição e retorna a si. Também o Outro se
duplica: Rolf era um homem para Lisa, passa a ser outro para Bengt,
que, só assim pode fazer a travessia de seu luto. Ao leitor cabe,
também, elaborar uma perda: a de suas ilusões a respeito do que lê.
Não temos mais o direito de acreditar nesses personagens límpidos e
coerentes que habitam as narrativas da tradição. Se eles ainda
surgem em muitos relatos contemporâneos, já não passam de farsas.
Cabe,
então, ao leitor se perguntar quem era aquele Outro que, em seu
lugar, com sinceridade e boa-fé, lia com tanta candura. A crença
cega, os dogmas, as certezas não lhe servem mais. A novela o leva a
uma difícil descoberta: a de que as grandes narrativas são aquelas
que nos libertam. Nem a beleza dá acesso à verdade, que é sempre
inacessível. “A beleza não é meta suficiente para a arte”,
dizia Kandinsky. Vêm-me, agora sim, os versos de Manuel Bandeira:
“Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”.
José
Castello, in Sábados inquietos
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