Fonte: Google Imagens
Quem
não tem pelo menos um amigo excêntrico ou meio lunático? Eu tenho
três, mas nenhum é perigoso nem ameaçador. Jeremias A.M. é um
deles. Jam ou Jam Balaya para os íntimos.
Nós
nos conhecemos em meados da década de 1970, quando eu morava no
Jabaquara. Eu tinha 23 anos, ele, 25, e nosso primeiro encontro foi
num ônibus velho e cinza da antiga CMTC. Voltávamos para casa
depois de uma missa de sétimo dia de uma das vítimas da ditadura. O
culto religioso terminou com um protesto. Um censor daquela época
diria: degenerou em um ato subversivo.
Mas
vamos voltar ao ônibus cinza e deixar que o hipotético censor fale
sozinho. Eu e Jam estávamos no mesmo banco da última fileira;
quando nos olhamos, pensei que ele era um dedo-duro e ele deve ter
pensado a mesma coisa. Isso também era loucura, uma loucura
circunstancial e quase coletiva, e das mais nocivas. Saltamos do
ônibus num ponto próximo à praça da Árvore e caminhamos quase
lado a lado, os dois assobiando, disfarçando, um querendo saber se o
outro era da polícia secreta. O medo nos unia. Quando paramos diante
do edifício onde eu morava, pensei em três hipóteses:
a)
não somos vizinhos e esse cara não é policial;
b)
somos vizinhos e esse cara é da polícia;
c)
não somos vizinhos e esse cara é da polícia.
Pensava
nessa múltipla escolha quando Jam disse:
“A
missa foi linda, mas o padre podia ter feito o sermão em latim. Você
viu quantos agentes estavam ajoelhados? Se o padre tivesse rezado em
latim, nenhum agente entenderia a mensagem.”
Então
Jam começou a citar poetas latinos, em latim. E eu pensei: nenhum
agente do Dops sabe latim.
Continuamos
a conversa num boteco do Jabaquara e nos tornamos amigos. Ainda
participamos de várias passeatas. Uma das diversões lunáticas de
Jam era devolver com chutes poderosos as bombas de gás lacrimogêneo
que policiais da PM lançavam contra os manifestantes. Ele gritava
“Pra trás, vilões” e chutava a bomba como se fosse um zagueiro
desesperado de um time que está a um minuto de um título mundial.
Depois
dessa passeata, descobri que Jam não tinha medo da polícia ou que
era muito menos medroso do que eu. Na noite de 22 de setembro de
1977, quando os policiais invadiram o campus da PUC, lembro que Jam
olhou para mim e disse: “Sei que você está com medo, então vamos
cantar”. O coral da universidade ensaiava numa sala ainda serena.
Quando a cavalgadura se aproximou, o regente pediu que o coral
cantasse “Bésame mucho”; e lá estava Jam infiltrado no coral,
cantando o bolero mexicano. Entre duas frases de amor, ele dizia: “No
tengo corazón de mantequilla”.
Foi um dos que conseguiram escapar, escondendo-se no vão entre o
forro e o telhado, onde passou uma noite insone espantando morcegos e
evitando ratos e baratas.
Jam
estudou direito no Largo São Francisco e começou a trabalhar numa
comissão de direitos humanos. Em 1989 nós nos vimos brevemente;
ainda tínhamos alguma esperança, mas em seguida Collor foi eleito…
Há
poucas semanas, nos reencontramos num restaurante próximo à praça
da Árvore. Quase duas décadas sem ver um amigo é uma temeridade.
Mas felizmente o tempo é equânime: ambos tínhamos envelhecido sem
desvantagem aparente para nenhum dos dois.
“Grande
Jeremias, grande Jam Balaya”, eu disse, brincando.
Recitou
epigramas de Marcial e depois contou que participava de comissões de
justiça e direitos humanos. Disse que não queria ouvir falar de um
membro da alta magistratura, que considera terroristas os homens e
mulheres que combateram o regime militar:
“Quer
dizer que os milicos deram um golpe, torturaram, mataram, e os que
resistiram aos tiranos são terroristas? Que história é essa,
Nortista? Que história da carochinha é essa?”
Velho
Jam Balaya de guerra. Continua irascível e irônico, pensei.
Pedi
uma garrafa de vinho; depois pedi para que ele recitasse poemas
latinos. A memória dele estava acesa, não esquecera nada.
Conversamos sobre a vida, sobre as bem-amadas gratas e ingratas e, no
fim, perguntei o que estava fazendo além do trabalho.
“Estudo
hipnotismo”, ele disse, sério.
“Hipnotismo?”
“Isso
mesmo”, respondeu. “Quer ver? Olhe bem para mim. Olhe nos meus
olhos, sem piscar.”
“O
que é isso, Jam?”
“Quer
ou não quer ser hipnotizado?”
“Agora
não. Agora estamos conversando. Mas por que está estudando
hipnotismo?”
“Ah,
quer saber mesmo? Hoje não tenho muito tempo para explicar meu
plano, mas posso adiantar uma coisa: só o hipnotismo é capaz de
acabar com a corrupção no país.”
Milton
Hatoum, in Um
solitário à espreita
Nenhum comentário:
Postar um comentário