Íamos
todos ver e ouvir Dona Elisa arrotar. Era aos sábados, pela
tardinha. A casa de Elisa ficava onde o casario deixa de ser bairro.
Depois dali era a estrada, o longe, o mundo. Se dizia que o universo
começara nas traseiras da casa da matrona. A prova se manifestava na
pedra do pátio — uma pegada. Era de pé humano mas bordada de
fabulosas versões. O dono da pegada era o mais antigo, esse que
caminhou para todos lados e continua marchando dentro de nós. Por
isso, nos benzíamos quando aflorávamos o pátio de Elisa.
Cada
sábado se cumpria o ritual em casa da Dona. Almoço longo, sempre de
igual cardápio: caril de raia, empapado em mandioca e farinha de
milho. Mantimento pesado, de enfartar quartel. Dava se lhe aquela
imensa refeição para ela se entafulhar. E depois se retirava
vantagem das flatulências de Dona Elisa. Quem desejasse assistir que
pagasse. Que se podia querer? A miséria dá a chávena, a
necessidade põe a colher.
Cobravam
os sobrinhos à entrada: não podia ser em papel. Tudo em moeda. Um
sobrinho à porta, de olhos fechados, estava interditado de olhar os
pagamentos. Conferia pelo som, tintilando os dinheirinhos na concha
fechada das mãos. Outro moço, ao lado, ordenava:
—
Entra. E não esqueça de benzer.
Dona
Elisa lá estava no meio do quintal, sentada em sua imensidão.
Parecia em transe, meio adormecida, olhos semicerrados, toda ela se
crocodilando na sombra. A boca lhe descaía, tivesse perdido o tino
na maxila. A dona estava, dizia se, preparando o momento. Suas
entranhas fermentavam, sua alma flutuava além do imenso corpo. Nós
nos sentávamos em volta. Solicitava se o privado e gentil silêncio,
contribuição do estimado público.
E
ali ficávamos, em respeitosa espera. Aguardávamos que irrompesse
dela o poderosíssimo arroto, esse que se dizia vir não dela mas das
entranhas do mundo.
— São
gases das profundezas — se garantia.
Eu
já havia assistido, certa vez, àquele espetáculo. E era de
inesquecer. Aquilo era erupção provinda dos magmas, um vulcão que
se adensava, como comboio que vem aflorando das vísceras do próprio
planeta. Por um instante se acreditava no final total, o arpocalipse.
Desta
vez, não fui só. Comigo levei o estrangeiro para assistir ao
fenômeno. Ia eu envergonhado, conscrito. Ser generoso é isso, de
tão fácil: dar se o que os outros nem chegam a pedir. Pois, o
estranho homem chegara à vila munido de credenciais. Não vinha
estudar plantas, ervas ou bichezas. Vinha nos estudar a nós, gente
useira em usos e acostumada a costumes. Ele ouvira falar de Dona
Elisa e seus poderes. E doutor que era trazia os engenhos que
capturam os momentos: fotografia, gravação.
Já
no pátio, depois de benzido, o estrangeiro se assentou como nós,
calça na areia, caneta e papéis no colo. Receoso, ainda me
perguntou se podia fotografar.
— É
melhor não — sugeri.
Mas
o fulano ia fotografar o quê? Um arroto? E mesmo o botão do
gravador lhe ia eu pedir que não usasse quando fomos interrompidos
pelo anunciar de um súbito adiamento.
— Mamã
Elisa está incomodada.
Ainda
a vi passar, amparada. Por um momento, estacou na penumbra.
Espreitava, pareceu me, o visitante. Percebi que chorava. Os
familiares, em redor, evitavam que fosse vista. Sentaram a pesada
senhora e abanaram leques em seu redor. Até que um sobrinho se
aproximou de nós e ordenou que o estrangeiro se descalçasse. Pés
nus atravessaram o patamar e me foi dito que traduzisse a ordem:
—
Encoste o seu pé na pegada na pedra.
O
homem decalcou o pé no oco da rocha. Mas a pegada não lhe servia no
pé. Mandaram que voltasse a calçar. Alguém disse:
— A
mamã pede que cheguem perto.
Fomos,
eu e o estrangeiro. Elisa parecia zonza. Bebera? Pediu que o
visitante se inclinasse sobre ela. Um longo momento ela espreitou o
rosto dele e sussurrou, triste:
— Não,
não é ele.
E
ficou, cheia de peso e idade, até que se endireitou no assento. O
triplo queixo estremeceu. Uma voz decretou o alarme:
— Ela
vai arrotar! Em vez do esperado e proclamado arroto veio um fiozinho
de voz, um piar de passarinho. Esse sopro foi sua última exibição.
Um
sobrinho à saída nos devolveu as moedas. Se desculpou:
— Esses
barulhos sempre foram o seu peito desmoronando.
Dona
Elisa, afinal, não era caso de ciências. Nem geologia nem
humanologia a entenderiam. Seu único fenômeno era amor, a
ausenciada paixão. E a pegada que, cada tarde de sábado, se soltava
da pedra e caminhava pelo peito de Elisa. Essa era a única razão do
estrondo: a pedra se soltando da pedra, o enterrado passo regressando
a este lado da vida.
Mia
Couto, in Na berma de nenhuma estrada
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