Por distração, ou incapacidade de lidar
com tantas informações, passo semanas sem consultar meu correio
eletrônico. Agora, ao fazer uma faxina na caixa de entrada, notei
que havia 122 mensagens não lidas. Percebi, com culpa, que não
enviei a um amigo um exemplar do livro Norte , de Marcel Gautherot;
certamente ele teria apreciado o olhar do fotógrafo
franco-brasileiro sobre a Amazônia. Mas, ao ler as mensagens
seguintes, a culpa cresceu de forma exponencial, pois os encontros
com outros amigos não passaram de promessas vãs.
Também me dei conta de que não respondi
a convites para ir a cidades do outro hemisfério, só de pensar em
fazer viagens longas me dá uma preguiça macunaímica, hoje em dia
até crianças e idosos são revistados com rudeza nos aeroportos;
prefiro viajar para o interior do Brasil, ou para dentro de mim
mesmo, lendo livros que me levam para outro tempo e outra paisagem.
Apaguei 27 títulos com anúncios
publicitários e, movido pela impaciência, dezenas de mensagens
iniciaram uma corrida vertiginosa rumo à lixeira. Quando ia apagar
tudo, eis que leio: Cayenne. Era um convite datado de setembro de
2009! Passou batido. E dessa vez lamentei… Quando criança, ouvia
do meu avô materno descrições de Caiena, onde, há quase um
século, o navio italiano em que ele viajava fez uma escala demorada
antes de seguir para Recife.
Caiena era uma palavra tão fantasiosa
que em setembro de 1990 fui conhecê-la. Mesmo sem entender o créole,
me senti em casa: reconheci peixes e frutas da Amazônia; o clima era
quase o mesmo, a água cor de fígado do rio Amazonas chegava até o
litoral da Guiana Francesa e misturava-se com a do Atlântico,
formando uma insólita paisagem oceânica e fluvial. Lembro que
visitei os lugares descritos por meu avô. Alguns, como La Crique e a
Place des Palmistes, ainda eram reconhecíveis; outros tinham sido
destruídos ou pertenciam à imaginação de um contador de
histórias.
Num bazar do bairro chinês vi uma urna
funerária indígena, com desenhos que lembravam os da cerâmica
marajoara. Perguntei em francês quanto custava, uma mulher
respondeu: 65 francos.
O sotaque nos unia: ela era brasileira,
de Macapá.
“Vim para Caiena em 1979”, disse
Edenilza. “Já tinha muito brasileiro na Guyane. Aprendi umas
palavras em francês lavando e passando roupa na casa de uma
família.”
Esticou o beiço para um homem sentado
num banquinho e acrescentou: “Dois anos depois me casei com Charles
Hung”.
Quando ele ficou de pé, o espaço do
bazar encolheu. Era um mulato altíssimo e corpulento, cujo olhar
revelava altivez; apertou minha mão e, talvez por cortesia,
pronunciou umas poucas palavras na minha língua. Depois, quando
conversamos em francês, Hung disse que era filho de um vietnamita
que fora detido e enviado para a Guiana Francesa. Em 1933, seu pai e
centenas de vietnamitas de Annam que lutavam contra os franceses na
Indochina foram transportados para Caiena e encarcerados no Bagne des
Annamites. Quando foi solto, casou com uma senegalesa, filha de um
dos carcereiros dessa mesma prisão.
Os olhos levemente puxados de Edileuza
assemelhavam-se aos de Charles. O colonialismo, em tempos e regiões
distintos, havia selado o destino desse casal. Lembro que no mesmo
dia consultei um mapa-múndi só para ver o itinerário desses
degredados políticos: a longa e infernal travessia do Golfo de
Tonquim até Caiena.
Na manhã seguinte voltei ao bazar e pedi
para que Hung me acompanhasse até o Bagne, situado em Tonnégrande.
Era uma tarde nublada e abafada, tipicamente amazônica. Ao
avistarmos a cadeia, disse a Hung que eu estava surpreendido com a
modesta dimensão do edifício, que eu julgava enorme.
“Há coisas mais surpreendentes”,
disse Hung. “Meu pai mofou nesse bagne e foi submetido a trabalhos
forçados por ter lutado contra os franceses no Vietnã. Eu, em
qualquer lugar do mundo, sou considerado asiático ou africano, mas
sou francês, minha língua materna é a francesa. Casei com uma
brasileira e meus três filhos são bilíngues. Um dia quero levá-los
ao Brasil e ao Vietnã.”
Apontou a cela onde o pai dele penou por
nove anos. Era a última de uma das duas fileiras separadas por uma
passagem coberta de cascalho e pedras. Parecia uma jaula, como se os
detentos fossem animais. Ou animais políticos. Notei que Hung queria
voltar ao bairro de Caiena que seu pai ajudara a construir em 1945.
No fundo de uma cela li com dificuldade uma palavra que um
prisioneiro escrevera provavelmente com a ponta de uma pedra: liberté
. As letras, quase apagadas pelo tempo, eram retorcidas e desiguais.
Talvez essa palavra ainda esteja lá, à
espera de um visitante nesse lugar arruinado da história.
Milton Hatoum, in Um solitário
à espreita
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