domingo, 3 de setembro de 2017

As garças

Já eram conhecidas nossas. Juntas, apareciam, ano por ano, frequentes, mais ou menos no inverno. Um par. Vinham pelo rio, de jusante, septentrionais, em longo voo — paravam no Sirimim, seu vale. Apenas passavam um tempo na pequenina região. Vivida a temporada, semanas, voltavam embora, também pelo rio, para o norte, horizonte acima, à extensão de suas asas. Deviam de estar em amores, quadra em que as penas se apuram e imaculam; e, às quantas, se avisavam disso, meiga meiamente, com o tão feio gazear. Eram da garça-branca-grande, a exagerada cândida, noiva. Apresentavam-se quando nem não se pensava nelas, não esperadas. Por súbito: somente é assim que as garças se suscitam. Depois, então, cada vez, a gente gostava delas. Só sua presença — a alvura insidiosa — e os verdes viam-se reverdes, o céu-azul mais, sem empano, nenhuma jaça. Visitavam-nos porque queriam, mas ficavam sendo da gente. Teriam outra espécie de recado. Naquele ano, também, foi assim. Há muito tempo, mesmo; deve de ter sido aí por junho, por julho. De manhã, bem você acordou, já elas se achavam no meio da várzea-grande, vestidas e plantadas. Não lhes minguavam ali peixes: os barrigudinhos em pingues bandos; e ainda rãs, jias, pererecas, outros bichinhos se-mexentes. Seus bicos, pontuais, revolviam brejos. Andavam na várzea, desciam o Sirimim todo, ficavam seguindo o Sirimim, pescando no Sirimim. Até a passear pelos regos e pocinhos da horta, para birra do Joaquim, suspeitoso das verduras, de estragos. — “Sai! Sai!” — enxotava-as, ameaçava-as, atrás. E elas, sempre ambas: jét! jét! — já no ar. Davam voadas baixas, por curto, ou suspendiam-se longe, leves, em arredondo, em órbitas, de suso vigiando a qualquer vida do arrozal. Passavam, planadas, pelo Pedro. — “Ôi! Ô bicho esquisito, gáiça...” tinha ele modos de apreciar. O revoo oblíquo, quase brusco, justo virara-se para cá, vinham batendo trape as asas, preparando-se para baixar, cruzavam rente à cozinha, resvés, amarrotavam um vento. — “Cruz! Nunca vi tão perto de mim esse trem...” — exclamava Maria Eva, em suma se sorrindo. Deixavam o brinquedo Lourinha e Lúcia — a que, ao contrário, era muito pretinha. — “E elas vão ficando mansas, querem morar mais com a gente?” — Lourinha, a sério, achou.
Nigra, latindo, perseguia-lhes as sombras no chão, súbito longo perpassantes. Após, olhava-as, lá acima, céleres: asinha, azadas, entre si alvas. Nigra, tão negra; elas — as brancas. Ainda mais, quando nos lindes da várzea, compartilhadas entre ervas, boscarejas, num pensativo povoar. Ali, o junco ou o arroz, acortinava-as. Sumiam-se e surgiam, nódoas, vivas, do compacto — o branco individuado. Sonhasse a gente naquilo repousar rosto, para um outro sono. Obrigavam-nos os olhos, se pegavam neles, seu grosso leite, a guiratingi-los. Aprumavam-se esquecidas, aprontadas, num pé só, na tortidão das pretas pernas, arremedando um infindar. Assim miravam-se nos espelhinhos d’água, preliminarmente, em pausas. Sós, horas. Zape! — o zás — porém, no jogar o bico, de quando em momento, pinçando e pingando: o chofre, e peixinho nenhum escapava-lhes, no discardume. Pois, bis. Daí, de repente, subiam do verdejo, esvoaçadas, quais sopradas, meias-altas, altas, não trêmulas, entravam naquele circunvagar de carrossel, sem sair das fronhas. Gostoso, acompanhá-las: voando, a garça golpeia devagar. Nigra, latia, aborrecida.
— “E elas são o contrário da jabuticaba?” ... — Lourinha achava de defini-las. Sabia-se que a Irene, que queria uma daquelas penas, tentara capturá-las, em grandes, infundadas urupucas. Do Dengo, empinado o queixo, parando de capinar o jardim: — “Se diz que essa carne não presta, é seca, seca, com ranço de peixe...” Assim passavam pelo bambu do sabiá, preferiam aterrissar na horta, luminosa de águas. Para pousar, vinha uma em-pé-zinha, do alto, meio curvas asas, a prumo e pino, com a agora verticalidade de um helicóptero. Já a outra porém se adiantara, tomando o chão: mas não firme, direto, não, senão que feito o urubu, aos três pulinhos — puf! puf! puf! — às vezes a gente se assustava. O Joaquim resmungou, confessou: que não desestimava delas, que deviam de ser o sinal certo de bom chover. Aproximavam-se ou afastavam-se, sem pressa, no meio dos canteirinhos das hortaliças, iam-se naquelas mesmas escuras e finas pernas, levantavam uma, o pé assim muito altinho erguido, encolhendo e enrugando as unhas para dentro: póf! — do jeito Lourinha descrevia-as.
Nigra esperava-as, latindo e se precipitando, de orelhas em-pé, com incerta celeradeza. Porém, foi atravessar a pontezinha, de quatro bambus, resvaladiços, e escorregou, de afoita, afundando-se de pernas entre eles, no saque da sofreguidão. Até poder safar-se, ficou ali, enganchado o grande corpo e remando no vácuo com as patas, que não dava para tocarem em fundo ou chão. Já por aí, às súbitas, aquelas se tinham alado, fazendo um repique ao acertarem o voo, e haviam-se longe, lá: elas voavam atrás da chuva. Sobrepassavam o quintal do Joaquim Sereno, retornavam para cá, no que é do Antônio, chegavam a um areal no rio, descendo — descaíam, colhidas. Justo faziam maio, júbilo, virgens, jasmins, verdade, o branco indubitável; lá longo tempo ficavam. E por toda a parte. Só quase nunca atravessavam a varzeazinha dos bois, para baixo da ponte, onde o Sirimim, subidinho, acrescentado de chuvas, se puxa com correnteza mais forte, e seus peixinhos rareiam ou se demoram menos, de ariscos.
Dormiam na várzea, ou nas pedras de beira ou meio do rio, as ilhas grandes. Também naquela árvore atrás da casa do Joaquim, o cajueiro, hoje cortado, só toco. Estavam por lá, nivais, próprias, já havia sete dias. Às vezes, ausentavam-se, mais, por suas horas; mas, de tardinha, voltavam.
Depois, porém, não foi assim.
Quando chegou uma tarde, levaram mais, muito, para voltar, e voltou só uma. Era a mulherzinha, fêmea — o Pedro explicou, entendedor. Ter-se-ia onde, a outra? Ao menos, não apareceu, a extraviada. A outra — o outro — fora morta. Ao Pedro, então, o Cristóvão simplesmente contou: que, lá para fora, um homem disse — que andou comendo “um bicho branco”.
A que sozinha retornou, voou primeiro, em círculos, por cima dos lugares todos. Decerto fatigada, pousou; e, ao pousar-se, tombava panda, à forte-e-meiga, por guarida. Altanada, imota, como de seu uso, a alvinevar, uma galanteza, no centro da várzea. Tanto parecia um grande botão de lírio, e a haste — fincado, invertido posto. Ouviu-se, à vez, que inutilmente chamasse o companheiro: como gloela, rouca, o gragraiado gazinar. Sim, se. Fazia frio, o ventinho, ao entardecer. Daí, logo, levantava voo outramente, desencontrado e quebrado, de busca — triste e triste. O voo da garça sozinha não era a metade do das duas garças juntas: mas só o pairar de ausência, a espiral de uma alta saudade — com fundo no céu.
Mas, foi daí a três dias.
Lourinha e Lúcia, de manhã, vinham à casa do Pedro, buscar uma galinha e dúzia de ovos. No que passavam perto da goiabeira de beira do Sirimim, depois da ponte, escutaram talvez débeis pios, baixinho: quic, quic. Na volta, porém, com os ovos e a galinha, no mesmo lugar, aquilo era berrando zangado: qué! qué! — o quaquá num apogeu.
Custaram para achar. Embrulhada no cipó, no meio do capinzal, caída, jogada, emaranhada presa toda, debaixo da goiabeira da grota — a garça, só. Sangue, no capim. Ela estava numa lástima. Tinha uma asa quebrada muito, dependurada. Arriçada, os atitos, queria assim mesmo defender-se, dava bicadas bem ferozes.
Sendo preciso livrá-la. Tomaram ânimo, as meninas. Lúcia agarrou-a pelo engrossar-se e arrijar-se renitente do pescoço, a desencurvar-se; enquanto Lourinha segurava nas asas — sã e quebrada. Pesava, um tanto. Jeito que a garça, meio resignada, meio selvagem, queria virar-se sempre, para rebicar. Só a pausas, seu guincho, que nem de pato; jeremiava.
Trazida para o terreirinho da casa, todos a rodearam, indecisos. Sem equilíbrio, pendente morta aquela asa, ela não podia suster-se. Jacente, mole, nem se movia. Mas não piava. Olhava-nos, a vago, de soslento, com aqueles amarelos-esverdolengados olhos, na cabecinha achatada, de quase cobra. A asa, esfrangalhada, faltando-lhe uns quatro dedos de osso, prendia-se ao corpo só por um restinho de pele. Que colmilhos de fera, de algum horrível e voraz bicho garceiro, assim teriam querido estraçalhá-la? Todavia, comeu seus uns dois ou três peixes, que Lourinha e Lúcia foram buscar, do Sirimim, pegos de peneira. Que se tinha de fazer?
O Cici e o Maninho achavam: só se torando o trambolho de asas, que senão ela não viveria. Mamãe e Lourinha e Lúcia não queriam, não. Não se chegando a concerto, assim rebatidas as razões, tirou-se à sorte. Então, o Cici, cortou, de um tico, com a tesoura, a pelanquinha, e a asa estragada se abateu no chão. Nossa garça, descativa, deu um sacolejão, depois se sacudiu toda, e saiu andando — fagueira, feia, feliz. Caminhou um pouco. Nigra, ressabiada, a boa distância, com desgosto, rabujava tácita, só olhares lançados.
Teve-se de levá-la a um dos canais da horta, lá ela podia gapuiar e esperar, dando suas quatro pernadas por ali, embaraçosa, assaz mais tímida e suspicaz. A várzea-grande, agora, era para ela um longe inacessível. Andava, porém, por aqueles pocinhos e regos todos do Joaquim, mal-encarado mas concorde. Apeada, metida em sua corcunda branca, permanecia, outro tanto, sem se encardir, só e esguia. Mas metia o bico dentro d’água, fisgava, arpoava, engolia. Tinha o bico forte, rosinha-alaranjado. — Jamais chamou pelo companheiro.
Toda tarde, a gente ia-a buscar. Fez-se-lhe um ninho de palha, no barracão da porta-da-cozinha. — “E agora, ela não vai mais embora, ficou da gente, de casa...” — jurava Lourinha, a se consolar.
Durou dois dias.
Morreu, no terceiro.
Ora, dá-se que estava coagulada, dura, durante a tarde, à boa beira d’água, caída, congelada, assaz. Morreu muito branca. Murchou.
Lourinha e Lúcia trouxeram-na, por uma última vez. Lúcia carregando-a, fingia que ela estivesse ainda viva, e que ameaçava dar súbitas bicadas nas pessoas, de jocoso. De um branco, do mesmo branco em cheio, pronto, por puro. O Dengo foi enterrá-la debaixo dos bambus grandes, de beira do Sirimim, onde sempre se sepultam pássaros, cães e gatos, sem jazigo.
Daí, o entendido disse: que fora pelo frio, pneumonia, pela falta da asa, que não a protegia mais, qual uma jaqueta. O entendido viera para examinar a Nigra, com um olho doente, vermelho, inchado, ela já estava quase cega; e Nigra era uma bondosa cachorra. Disse que algo pontudo furara-lhe aquele olho: ponta de faca, por exemplo, ápice de bico de ave.
A gente pensava nelas duas. De que lugar, pelo rio, do norte, elas costumavam todo ano vir? A garça, as garças, nossas, faziam falta, tristes manchas de demasiado branco, faziam muito escuro.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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