Mwadia
procurava as roupas que o rio arrastara quando soltou um grito. O
pastor acorreu, esbaforido. Seus olhos se petrificaram. Entre os
verdes sombrios, figurava a estátua de uma mulher branca. Era uma
Nossa Senhora, mãos postas em centenária prece. As cores sobre a
madeira tinham-se lavado, a madeira surgia, aqui e ali, espontânea e
nua. O mais estranho, porém, é que a Santa tinha apenas um pé. O
outro havia sido decepado.
— Já
viu, Mwadia? Esta é a Virgem coxa!
O
pastor tocou a estátua. Eram aquelas as mãos que vira em sonhos, as
mãos da mulher branca que o visitara em Antigamente.
A
mulher não comentou. Em vez disso, ela apontou para um arbusto e um
novo sobressalto sacudiu o pastor. Madzero tropeçou no passo que não
deu. Pois ali se exibiam as ossadas completas de pessoa humana. O
pastor recuou como se, ao ganhar distância, lhe viesse mais
entendimento. Desviou o rosto: ao contemplar os ossos ele via o seu
próprio esqueleto. Estava decidido a retirar-se, de imediato,
daquela floresta quando o gesticular desesperado da mulher lhe
revelou uma nova descoberta, brilhando entre o capim.
— Veja,
marido: uma caixa! Vou abrir!
O
pastor se apressou a impedir que Mwadia tocasse na velha caixa. Era
um baú de madeira já meio apodrecido. Rápido, o pastor tomou as
decisões: o esqueleto ficava; a caixa e a estátua seguiriam com
eles. O que tinham que fazer era carregar o burro Mbongolo e sair
rapidamente da floresta. Porém, no momento em que abraçou a Virgem,
o pastor sentiu-se tomado por uma tontura e zonzeou pelo espaço como
um bêbado. Mwadia, atónita, olhou o par e se questionou: o marido
dançava com a estátua? Mas foram uns tantos passos embriagados e o
pastor desabou no chão, não se desfazendo do abraço da Santa. E
assim ficaram, um tempo, um sobre o outro, como se namorassem, ele e
a imagem. Até que o homem murmurou, sufocado:
— Me
ajude, mulher!
Mwadia
deu-lhe uma mão. Madzero libertou-se da Virgem Maria, mas permaneceu
acabrunhado. A mulher estranhou o deplorável estado do marido. Mais
a espantou foi a sombra que se anichara nos seus olhos. E foi o
aperto de um ciúme que a fez duvidar: como é que a estátua
perturbara tanto assim o seu Zero Madzero?
— Estou
perturbado, sim , admitiu o homem. Espreite o meu ombro.
Mwadia
confirmou no ombro do marido a marca que, antes, o curandeiro tinha
detectado. Era uma marca redonda, a impressão do seio da Virgem
sobre a carne de Zero.
Passou-se
um tempo, o pastor ganhou tento e chamou o burro para iniciar a
operação de carregamento. Aflita, a esposa encostou-se ao animal e
reagiu nervosamente:
— Essas
coisas não podem sair daqui, Zero!
—
Deixe-me fazer o que eu sei que tem
que ser feito.
— Essas
coisas pertencem aqui, ninguém as pode tirar.
— Pois
eu vou levar a Virgem para onde ela pertence.
— O
melhor é perguntar a Lázaro. Foi ele que nos deu permissão de vir
aqui.
—
Consultemos Lázaro, sim. Mas uma
coisa é certa: a Virgem Maria vai para a igreja. E é você que vai
levá-la para Vila Longe.
— Eu,
marido?
— Eu
é que não posso. Você bem sabe que não posso voltar lá.
Mia
Couto, in O
outro pé da sereia
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