— Hoje
tem espetáculo? — perguntei, tentando piscar um olho à maneira
daqueles que compartilham um segredo. Mas semelhante linguagem mímica
havia deixado de ser natural para mim, pois, vivendo como vivia,
quase perdera o hábito de falar e senti que toda a minha tentativa
de fazer um sinal acabara não passando de uma estúpida careta.
—
Espetáculo? — grunhiu o homem,
olhando-me como se jamais me tivesse deitado os olhos. — O senhor
que vá ao Águia Negra, se é o que deseja.
Na
verdade eu não estava seguro se aquele era ou não o homem do
cartaz. Decepcionado, continuei a caminhar, sem saber aonde ia, sem
metas, sem preocupações ou deveres. A vida me sabia horrivelmente
amarga. O asco que morava em mim estava atingindo o seu mais alto
nível, sentia que a vida me empurrava e me arrastava para fora.
Furioso corri pela cidade em brumas, tudo me parecendo cheirar a
terra e a fossa. Não! em meu enterro não haveria nenhum daqueles
pássaros da morte, com suas sotainas e seus murmúrios piedosos! Ah!
para qualquer sítio que olhasse, para qualquer parte que dirigisse o
pensamento, em lugar algum me esperava uma alegria, em nenhuma parte
havia um chamado para mim, nem sentia qualquer atrativo, tudo
cheirava a decomposição e a apodrecido conformismo, tudo era velho,
murcho, triste, balofo e esgotado. Meu Deus! como era possível tal
coisa? Que havia sido de mim, que tivera as asas da juventude e da
poesia, o amigo das musas, o viajante do mundo, o ardente idealista?
Como me sobreviera uma paralisia tão lenta e furtiva, esse ódio
contra mim mesmo e contra todos, essa obstrução de todo sentimento,
essa profunda e perniciosa indolência, esse imundo inferno de
saciedade e coração vazio?
Ao
passar pela biblioteca, encontrei-me com um jovem professor, com quem
havia conversado algumas vezes e a quem fora procurar em sua casa
quando da última vez em que estive aqui, faz alguns anos, para
conversarmos sobre mitologia oriental — um tema que então me
interessava muito. 0 estudioso vinha em minha direção, andando com
ar empertigado e aparência de quem sofre da vista, e só me
reconheceu no momento exato em que eu já me dispunha a pasmar ao
largo. Precipitou-se sobre mim com muita cordialidade, e eu, em meu
lamentável estado de espírito, quase me senti agradecido por tal
cordialidade. Estava contente em ver-me e animou-se ainda mais
recordando-me algumas particularidades de nossas conversações
anteriores, assegurando-me que muito devia aos meus estímulos e que
pensava freqüentemente em mim; desde aquela época não voltara a
conversar com nenhum colega de maneira tão emotiva e proveitosa.
Perguntou-me desde quando estava na cidade (menti: uns poucos dias
apenas) e por que ainda não fora visitá-lo. Olhei para a cara do
homem, achei a cena um tanto ridícula, mas lambi como um cão
faminto aquelas migalhas de simpatia, aquelas sobras de calor humano,
aquele bocado de reconhecimento. Harry, o Lobo da Estepe, sorriu
comovido, a baba veio-lhe às fauces secas e, contra sua vontade,
deixou-se entregar ao sentimentalismo. Sim, tornei a mentir: estava
aqui apenas de passagem, por motivos de estudos, e não me sentia
muito bem disposto, senão já teria ido visitá-lo, é claro. E
quando me convidou amavelmente para passar a tarde em sua casa,
aceitei agradecido, e pedi-lhe que transmitisse minhas recomendações
à sua senhora, enquanto as faces me doíam de tanto esforço, pois
não estavam acostumadas àquele fastidioso exercício. E durante o
tempo em que eu, Harry Haller, estive em meio à rua surpreso e
envaidecido, estudadamente polido e sorridente, diante do rosto míope
e bondoso do colega professor, o outro Harry ficou ao lado, rindo-se
ironicamente e pensando no irmão tão singular, tão
desnaturalizado, tão mentiroso que tinha, pois não fazia dois
minutos havia arreganhado os dentes contra o mundo maldito e agora, à
primeira chamada, ao primeiro saudar ingênuo de um honrado homem de
bem se sentia comovido e extremamente condescendente, e se
refestelava todo como um leitãozinho diante de um pouco de afeto, de
consideração e de amizade. Assim estavam os dois Harrys, as duas
figuras extraordinariamente antipáticas, diante do professor,
insultando-se, observando-se e cuspindo-se mutuamente, e ao mesmo
tempo fazendo a si mesmas, como sempre que se achavam nessa situação,
a mesma pergunta: se aquilo não passava de debilidade e estupidez
humana, vulgar falta de hombridade, ou se aquele sentimental egoísmo,
aquela falta de caráter aquele desmazelo e discussão dos
sentimentos era simplesmente uma peculiaridade dos lobos da estepe.
Se tal sordidez fosse comum aos humanos, então podia entregar-me ao
desprezo pelo mundo com renovadas energias, mas se fosse apenas uma
debilidade pessoal, então ali estava o motivo para uma orgia de
autodesprezo. Com a disputa entre os dois Harrys, o professor foi
quase esquecido; de repente voltou a parecer-me aborrecido e me
apressei em despachá-lo. Vi-o afastando-se pela avenida deserta, com
o passo humilde e algo cômico de um idealista, de um crente.
Alvoroçava-se a batalha em meu interior, e enquanto eu contraía e
distendia mecanicamente os dedos intumescidos, em luta contra a gota,
tive de confessar a mim mesmo que me havia deixado apanhar, que
aceitara um convite para jantar às sete e meia da noite, com a
obrigação de fazer cortesias, de conversar assuntos científicos e
de contemplar a felicidade de uma família estranha. Voltei furioso
para casa, misturei conhaque com água, engoli minhas pílulas para a
gota, estendi-me no divã e tentei ler. Quando consegui entregar-me
um instante à leitura da Viagem de Sofia, de Memel à Saxônia, um
folhetim encantador do século XVIII, recordei-me de repente do
convite e de que não estava barbeado nem vestido. Sabe Deus por que
motivo havia concordado em aceitar o convite! Assim sendo, Harry,
levanta-te, deixa o livro de lado, ensaboa a cara, raspa a barba até
sair sangue, veste a roupa e entrega-te ao convívio dos homens! E
enquanto me barbeava, pensei no imundo buraco de lama do cemitério,
no qual haviam baixado o desconhecido, e nos rostos avinagrados dos
contrafeitos irmãos de Cristo, mas não consegui rir-me disto nem
uma só vez. Ali terminava, segundo me parecia, naquele imundo buraco
de lama, em meio às tolas palavras do pregador e os estúpidos
gestos dos acompanhantes, no espetáculo desconsolador de todas
aquelas cruzes de lápides de metal e mármore, junto àquelas flores
artificiais de olha e vidro — ali terminava não só o
desconhecido, ali acabaria enterrado amanhã ou depois não só eu,
diante da perplexidade e da hipocrisia dos acompanhantes, mas ainda
tudo o mais, todo o nosso anseio, toda a nossa cultura, toda a nossa
fé. toda nossa alegria de viver e nosso gosto de existir! Nosso
mundo cultural era um cemitério, ali estavam Jesus Cristo e
Sócrates, ali estavam Mozart e Haydn, Dante e Goethe; não passavam
de nomes meio apagados numa placa de metal enferrujada, rodeada de
assistentes falsos e hipócritas, que dariam tudo para continuar
acreditando nas placas de metal, em outros tempos sagradas para eles;
que dariam tudo para dizer ao menos umas honestas e sérias palavras
de tristeza e desesperança sobre o mundo desaparecido, mas só
sabiam em vez disso rodear o túmulo, gesticulantes e forçados.
Acabei cortando o queixo no lugar de costume; gastei uns minutos para
estancar o sangue, e tive de trocar o colarinho, sem saber por que
fazia tudo aquilo, pois não sentia o menor prazer em atender àquele
convite. Mas uma parte de Harry estava representando de novo uma
comédia, dizendo que o professor era uma pessoa simpática;
suspirava por um pouco de aroma de humanidade, de sociedade e de
palestra; lembrou-se da bela mulher do professor, achou no fundo
muito alentadora a idéia de passar a noite na casa daqueles amáveis
anfitriões, e me ajudou a pregar no queixo um pedacinho de
esparadrapo; ajudou-me a vestir e dar o nó à gravata decente, e me
impediu com jeito de seguir meu verdadeiro impulso de permanecer em
casa. Ao mesmo tempo, pensava comigo: "Assim como agora me visto
e saio, vou visitar o professor e troco com ele algumas frases
amáveis, mais ou menos falsas, tudo isto contra a minha vontade,
assim procede a maioria dos homens que vivem e negociam todos os
dias, todas as horas, forçadamente e sem na realidade querê-lo;
fazem visitas, mantêm conversações, sentam-se durante horas
inteiras em seus escritórios e fábricas, tudo à força,
mecanicamente, sem vontade; tudo poderia ser realizado com a mesma
perfeição por máquinas ou não se realizar; e essa mecânica
eternamente continuada é o que lhes impede, assim como a mim, de
exercer a crítica de sua própria vida, reconhecer e sentir sua
estupidez e superficialidade, sua desesperada tristeza e solidão. E
têm razão, muitíssima razão, os homens que assim vivem, que se
divertem com seus brinquedinhos, que correm atrás de seus assuntos,
em vez de se oporem à mecânica aflitiva e olharem desesperados o
vazio, como faço eu, homem marginalizado que sou. Se às vezes
desprezo e até me burlo dos homens nestas páginas, não será por
isto que os culpe de minha indigência pessoal! Mas eu, que cheguei
tão longe e estou à margem da vida, de onde se tomba à escuridão
sem fundo, cometo uma injustiça e minto, se pretendo enganar-me e
enganar os outros, como se funcionasse também para mim aquela
mecânica, como se continuasse a pertencer àquele mundo nobre e
infantil do eterno jogo!
Hermann
Hesse, in O Lobo da Estepe
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