segunda-feira, 4 de setembro de 2017

A vida me sabia horrivelmente amarga

Hoje tem espetáculo? — perguntei, tentando piscar um olho à maneira daqueles que compartilham um segredo. Mas semelhante linguagem mímica havia deixado de ser natural para mim, pois, vivendo como vivia, quase perdera o hábito de falar e senti que toda a minha tentativa de fazer um sinal acabara não passando de uma estúpida careta.
Espetáculo? — grunhiu o homem, olhando-me como se jamais me tivesse deitado os olhos. — O senhor que vá ao Águia Negra, se é o que deseja.
Na verdade eu não estava seguro se aquele era ou não o homem do cartaz. Decepcionado, continuei a caminhar, sem saber aonde ia, sem metas, sem preocupações ou deveres. A vida me sabia horrivelmente amarga. O asco que morava em mim estava atingindo o seu mais alto nível, sentia que a vida me empurrava e me arrastava para fora. Furioso corri pela cidade em brumas, tudo me parecendo cheirar a terra e a fossa. Não! em meu enterro não haveria nenhum daqueles pássaros da morte, com suas sotainas e seus murmúrios piedosos! Ah! para qualquer sítio que olhasse, para qualquer parte que dirigisse o pensamento, em lugar algum me esperava uma alegria, em nenhuma parte havia um chamado para mim, nem sentia qualquer atrativo, tudo cheirava a decomposição e a apodrecido conformismo, tudo era velho, murcho, triste, balofo e esgotado. Meu Deus! como era possível tal coisa? Que havia sido de mim, que tivera as asas da juventude e da poesia, o amigo das musas, o viajante do mundo, o ardente idealista? Como me sobreviera uma paralisia tão lenta e furtiva, esse ódio contra mim mesmo e contra todos, essa obstrução de todo sentimento, essa profunda e perniciosa indolência, esse imundo inferno de saciedade e coração vazio?
Ao passar pela biblioteca, encontrei-me com um jovem professor, com quem havia conversado algumas vezes e a quem fora procurar em sua casa quando da última vez em que estive aqui, faz alguns anos, para conversarmos sobre mitologia oriental — um tema que então me interessava muito. 0 estudioso vinha em minha direção, andando com ar empertigado e aparência de quem sofre da vista, e só me reconheceu no momento exato em que eu já me dispunha a pasmar ao largo. Precipitou-se sobre mim com muita cordialidade, e eu, em meu lamentável estado de espírito, quase me senti agradecido por tal cordialidade. Estava contente em ver-me e animou-se ainda mais recordando-me algumas particularidades de nossas conversações anteriores, assegurando-me que muito devia aos meus estímulos e que pensava freqüentemente em mim; desde aquela época não voltara a conversar com nenhum colega de maneira tão emotiva e proveitosa. Perguntou-me desde quando estava na cidade (menti: uns poucos dias apenas) e por que ainda não fora visitá-lo. Olhei para a cara do homem, achei a cena um tanto ridícula, mas lambi como um cão faminto aquelas migalhas de simpatia, aquelas sobras de calor humano, aquele bocado de reconhecimento. Harry, o Lobo da Estepe, sorriu comovido, a baba veio-lhe às fauces secas e, contra sua vontade, deixou-se entregar ao sentimentalismo. Sim, tornei a mentir: estava aqui apenas de passagem, por motivos de estudos, e não me sentia muito bem disposto, senão já teria ido visitá-lo, é claro. E quando me convidou amavelmente para passar a tarde em sua casa, aceitei agradecido, e pedi-lhe que transmitisse minhas recomendações à sua senhora, enquanto as faces me doíam de tanto esforço, pois não estavam acostumadas àquele fastidioso exercício. E durante o tempo em que eu, Harry Haller, estive em meio à rua surpreso e envaidecido, estudadamente polido e sorridente, diante do rosto míope e bondoso do colega professor, o outro Harry ficou ao lado, rindo-se ironicamente e pensando no irmão tão singular, tão desnaturalizado, tão mentiroso que tinha, pois não fazia dois minutos havia arreganhado os dentes contra o mundo maldito e agora, à primeira chamada, ao primeiro saudar ingênuo de um honrado homem de bem se sentia comovido e extremamente condescendente, e se refestelava todo como um leitãozinho diante de um pouco de afeto, de consideração e de amizade. Assim estavam os dois Harrys, as duas figuras extraordinariamente antipáticas, diante do professor, insultando-se, observando-se e cuspindo-se mutuamente, e ao mesmo tempo fazendo a si mesmas, como sempre que se achavam nessa situação, a mesma pergunta: se aquilo não passava de debilidade e estupidez humana, vulgar falta de hombridade, ou se aquele sentimental egoísmo, aquela falta de caráter aquele desmazelo e discussão dos sentimentos era simplesmente uma peculiaridade dos lobos da estepe. Se tal sordidez fosse comum aos humanos, então podia entregar-me ao desprezo pelo mundo com renovadas energias, mas se fosse apenas uma debilidade pessoal, então ali estava o motivo para uma orgia de autodesprezo. Com a disputa entre os dois Harrys, o professor foi quase esquecido; de repente voltou a parecer-me aborrecido e me apressei em despachá-lo. Vi-o afastando-se pela avenida deserta, com o passo humilde e algo cômico de um idealista, de um crente. Alvoroçava-se a batalha em meu interior, e enquanto eu contraía e distendia mecanicamente os dedos intumescidos, em luta contra a gota, tive de confessar a mim mesmo que me havia deixado apanhar, que aceitara um convite para jantar às sete e meia da noite, com a obrigação de fazer cortesias, de conversar assuntos científicos e de contemplar a felicidade de uma família estranha. Voltei furioso para casa, misturei conhaque com água, engoli minhas pílulas para a gota, estendi-me no divã e tentei ler. Quando consegui entregar-me um instante à leitura da Viagem de Sofia, de Memel à Saxônia, um folhetim encantador do século XVIII, recordei-me de repente do convite e de que não estava barbeado nem vestido. Sabe Deus por que motivo havia concordado em aceitar o convite! Assim sendo, Harry, levanta-te, deixa o livro de lado, ensaboa a cara, raspa a barba até sair sangue, veste a roupa e entrega-te ao convívio dos homens! E enquanto me barbeava, pensei no imundo buraco de lama do cemitério, no qual haviam baixado o desconhecido, e nos rostos avinagrados dos contrafeitos irmãos de Cristo, mas não consegui rir-me disto nem uma só vez. Ali terminava, segundo me parecia, naquele imundo buraco de lama, em meio às tolas palavras do pregador e os estúpidos gestos dos acompanhantes, no espetáculo desconsolador de todas aquelas cruzes de lápides de metal e mármore, junto àquelas flores artificiais de olha e vidro — ali terminava não só o desconhecido, ali acabaria enterrado amanhã ou depois não só eu, diante da perplexidade e da hipocrisia dos acompanhantes, mas ainda tudo o mais, todo o nosso anseio, toda a nossa cultura, toda a nossa fé. toda nossa alegria de viver e nosso gosto de existir! Nosso mundo cultural era um cemitério, ali estavam Jesus Cristo e Sócrates, ali estavam Mozart e Haydn, Dante e Goethe; não passavam de nomes meio apagados numa placa de metal enferrujada, rodeada de assistentes falsos e hipócritas, que dariam tudo para continuar acreditando nas placas de metal, em outros tempos sagradas para eles; que dariam tudo para dizer ao menos umas honestas e sérias palavras de tristeza e desesperança sobre o mundo desaparecido, mas só sabiam em vez disso rodear o túmulo, gesticulantes e forçados. Acabei cortando o queixo no lugar de costume; gastei uns minutos para estancar o sangue, e tive de trocar o colarinho, sem saber por que fazia tudo aquilo, pois não sentia o menor prazer em atender àquele convite. Mas uma parte de Harry estava representando de novo uma comédia, dizendo que o professor era uma pessoa simpática; suspirava por um pouco de aroma de humanidade, de sociedade e de palestra; lembrou-se da bela mulher do professor, achou no fundo muito alentadora a idéia de passar a noite na casa daqueles amáveis anfitriões, e me ajudou a pregar no queixo um pedacinho de esparadrapo; ajudou-me a vestir e dar o nó à gravata decente, e me impediu com jeito de seguir meu verdadeiro impulso de permanecer em casa. Ao mesmo tempo, pensava comigo: "Assim como agora me visto e saio, vou visitar o professor e troco com ele algumas frases amáveis, mais ou menos falsas, tudo isto contra a minha vontade, assim procede a maioria dos homens que vivem e negociam todos os dias, todas as horas, forçadamente e sem na realidade querê-lo; fazem visitas, mantêm conversações, sentam-se durante horas inteiras em seus escritórios e fábricas, tudo à força, mecanicamente, sem vontade; tudo poderia ser realizado com a mesma perfeição por máquinas ou não se realizar; e essa mecânica eternamente continuada é o que lhes impede, assim como a mim, de exercer a crítica de sua própria vida, reconhecer e sentir sua estupidez e superficialidade, sua desesperada tristeza e solidão. E têm razão, muitíssima razão, os homens que assim vivem, que se divertem com seus brinquedinhos, que correm atrás de seus assuntos, em vez de se oporem à mecânica aflitiva e olharem desesperados o vazio, como faço eu, homem marginalizado que sou. Se às vezes desprezo e até me burlo dos homens nestas páginas, não será por isto que os culpe de minha indigência pessoal! Mas eu, que cheguei tão longe e estou à margem da vida, de onde se tomba à escuridão sem fundo, cometo uma injustiça e minto, se pretendo enganar-me e enganar os outros, como se funcionasse também para mim aquela mecânica, como se continuasse a pertencer àquele mundo nobre e infantil do eterno jogo!
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

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