Sem
razão aparente alguma, sem que eu a tivesse chamado, uma parábola
de Jesus saiu por iniciativa própria do arquivo da minha memória em
que ela se encontrava guardada fazia muitos anos:
Havia
um homem rico cujas terras lhe deram grande colheita. E pensava
consigo mesmo: “O que vou fazer? Não tenho onde guardar a
colheita.” Disse então: “Já sei o que vou fazer; vou derrubar
os celeiros para fazê-los maiores e ali guardar todo o trigo e os
meus bens. E direi à minha vida: Tens muitos bens armazenados para
muitos anos. Descansa, come, bebe, regala-te.” Deus, porém, lhe
disse: “Insensato! Ainda nesta mesma noite tirarão a tua vida. E
para quem ficará tudo o que acumulaste?” (Lucas 12,16-21).
Ouvi
muitos sermões sobre esse texto. Os pregadores gostavam dele.
Usavam-no para amedrontar os homens com a possibilidade da morte e
com os horrores do inferno. Dessa forma, com frequência conseguiam
submetê-los à sua manipulação espiritual. Mas a parábola não
fala sobre isso. A sua pungência se encontra na pergunta terrível:
“Para quem ficará tudo o que acumulaste?”
Acumular
é um dos mais profundos instintos da alma. Porque a alma ama. O amor
deseja possuir. Se amo a casinha de paredes brancas e janelas azuis,
por que não possuí-la, se posso? Se ela for minha, eu cuidarei
dela, plantarei um jardim. Se amo a cachorrinha que brinca, por que
não possuí-la? Se eu, que a amo, a possuir, cuidarei dela e nós
dois passearemos pelo parque. Se amo a música que ouço, por que não
possuir o CD? Eu o levarei para casa e poderei gozá-lo
quantas vezes quiser. O amor é onívoro – quer comer tudo. Comer é
a forma mais radical de possuir. Comendo, o que estava fora e era
outro passa a ser parte do meu próprio corpo. “Sou onívoro de
sentimentos, de seres, de livros, de acontecimentos e lutas. Comeria
toda a terra. Beberia todo o mar”, dizia Neruda.
Eu
ajuntei muitas coisas e estou sendo perturbado pela pergunta da
parábola: “Para quem ficará tudo o que acumulaste?” Quando o
que se acumulou se resume a bens e dinheiro, a resposta é fácil.
Dinheiro e bens são valores que se medem por meio de números.
Assim, basta dividir o total pelo número dos herdeiros definidos
legalmente e dar a cada um a parte que lhe cabe.
Mas
e as outras coisas que acumulei? Jesus comparou o corpo a um tesouro
do qual cada um tira as coisas que ajuntou. Cada pessoa tem um
tesouro que é único, só seu. No meu tesouro há uma quantidade
enorme de coisas absolutamente inúteis, que não têm nenhum valor
de mercado. Livros usados, alguns, os que mais amo, já caindo aos
pedaços, de tanto amor que fizemos. Há os CDs – gosto particular
meu. Outros não teriam paciência para ouvi-los. Como esse que estou
ouvindo agora, três suítes para violoncelo de Bach, transcritas
para flauta doce. Quadros – o mais querido sendo Mulher lendo uma
carta (sempre que falo sobre essa tela de Vermeer, quase choro).
Livros de poesia, literatura, arte, jardins. Um peso de papel de
vidro verde-claro. Fotografias. Cartas. Memórias. Parece estranho,
mas o fato é que memórias são também objetos que acumulamos.
Estão guardadas no nosso tesouro. Há umas memórias das quais me
livraria com prazer. Seria preciso inventar uma técnica de faxina de
memórias: uma vez por ano, limpeza das memórias que fazem sofrer.
Mas há as memórias que amo. Curioso: nenhuma delas é sobre
acontecimentos importantes. São memórias-brinquedo: fico brincando
com elas. E isso me faz feliz. Bobagens: a cena de um menino andando
a cavalo de madrugada no meio do campo coberto com capim-gordura, o
barulho da água caindo no monjolo, a música dolorida-apaixonada dos
carros de boi, o apito rouco da maria-fumaça, as minhas cachorras,
chupar jabuticaba no alto da jabuticabeira, momentos de amor leve com
as pessoas que amo, e uma infinidade de cenas, como se fossem
fotografias, que ficaram gravadas na minha memória. Quando eu
morrer, vão se perder. Mas não quero que se percam. Tenho de dá-las
para alguém que tome conta delas. Aí me vem a aflição por
escrever. Quando escrevo, estou lutando contra a morte. A morte das
coisas que o meu amor ajuntou e que vão se perder quando eu morrer.
Alberto
Caeiro diz:
Eu
nunca guardei rebanhos,
Mas
é como se os guardasse.
[...]
Quando
me sento a escrever versos [...],
Sinto
um cajado nas mãos [...],
Olhando
para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou
olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho.
Também
sou guardador de rebanhos. Minhas ovelhas são minhas ideias. Para
quem ficarão minhas ovelhas? Quem cuidará delas? Não quero que
minhas ovelhas fiquem para um açougueiro. Açougueiro só reconhece
ovelhas mortas penduradas em ganchos no açougue. Ovelhas são
dinheiro. Mas minhas ovelhas não são dinheiro.
O
que a gente acumula é parte da gente – porque somente o amado é
acumulado. Como disse, tudo é fácil quando o que se acumula se
resume a dinheiro. Quem só acumulou dinheiro é porque só amou
dinheiro. A coisa se complica quando o que se ajuntou foram ovelhas.
É preciso encontrar alguém que as ame, que tenha alma de pastor,
que as chame pelo nome, que as conduza por pastos verdes e fontes de
águas frescas, as defenda dos lobos e as acaricie ao fim da tarde.
Mas
o fato é que não é possível acumular coisa alguma. O acumular é
uma ilusão. Por isso Deus chamou o rico de insensato. Uma outra
versão diz: “louco”, alguém que perdeu o juízo. Quem pensa que
acumula é doido. Bernardo Soares, no Livro do Desassossego,
medita num estilo que faz lembrar santo Agostinho nas Confissões:
Que
possuímos? Que possuímos? Possuímos a alma? Ouve-me em silêncio.
Nós não a possuímos. Nem a nossa alma é nossa sequer. Como, de
resto, possuir uma alma? E se não possuo o meu corpo, como posso eu
possuir com ele? Eu não possuo a minha alma – como posso possuir
com ela?
Releio
a parábola. Não me causa medo. Deus não tem vinganças a realizar.
Mas a pergunta me atravessa: “Para quem ficará tudo o que
acumulaste?” Quem cuidará do meu rebanho?
Mas,
talvez, essa seja uma pergunta ociosa, impossível de ser respondida.
Eu apenas tive a ilusão de possuir um rebanho, apenas tive a ilusão
de haver acumulado objetos, memórias, ideias. Esse rebanho nunca foi
meu. É um grande rebanho que pasta pelos pastos do mundo, ovelhas à
procura de quem cuide delas. Por um tempo estiveram sob os meus
cuidados: eu as chamava pelo nome. Depois sairão por aí e
encontrarão um pastor. Muitos são os pastores. De vez em quando a
gente topa com um deles, e então é aquela alegria. Tocamos flauta
juntos. Assim, não há por que me preocupar. Minhas ovelhas não
ficarão abandonadas.
Rubem
Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente
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