— Não
olhe agora — pedi.
— O
que é? — se assustou Massimo.
Era
pouco, apenas o tal homem que aparecera dias antes, o dono do
malogrado cabrito. Não escapámos a tempo. O indivíduo se interpôs,
pedinchorão:
—
Então, patrões?
Desta
vez, apontei o italiano. Que era quem devia escutar a lamúria.
Avisado eu estava: dá-se a esmola, mesmo a maior, e o mendigo se
afastará sempre de mãos vazias. Mas este homem não se rubricava
como pedinte. Reclamava sim a compensação de uma perda: que aquilo
não era um qualquer cabrito, aquilo era um bicho de companhia, que
só se afastava para cobrir umas tantas cabras. No resto, não fazia
diferença de um cachorro, até ladrava contra os gatos. E abanar o
rabo isso ele fazia com mais requinte que a própria Ana Deusqueira.
— O
melhor é mesmo dar-lhe qualquer coisa — sugeri a Massimo.
Afinal,
o pobre fulano tinha a desgraça à perna. Era um pastor às ordens
de Estêvão Jonas. Contudo, há meses que não recebia pagamento. Eu
não queria ouvir o desfile de lamentos. Se Massimo não desse, eu
mesmo esmolava o pobre. Mas o delegado da ONU remexeu os bolsos e
tirou uma nota de dólar. Estendeu-a ao reclamante. Este examinou a
nota com apuro e sacudiu a cabeça: que aquele dinheiro estava
estragado. Lhe perdoasse Deus por amaldiçoar o santo papel, mas ele
preferia as nacionais notas mesmo todas engorduradas. Aliás, ele,
com o trauma de ver falecer a seus pés o seu estimado cabritão, até
começara a sentir comichões no corpo todo. Carecia, portanto, de
cuidados médicos, quem sabe pela vida inteira. E isso era maleita
para mais que uma simples nota.
O
italiano, farto, virou costas e se encaminhou para a administração.
O lesado cabriteiro deixou-se ficar, contemplando o dólar à
transparência. Eu corri para acompanhar Massimo, que já espreitava
pela janela do velho edifício. Confirmava-se: o rádio transmissor
ficara bem instalado na sede da administração, numa sala a que só
ele tinha acesso. Eu o ajudara a instalar os aparelhos, montar a
antena. Testáramos os aparelhos, tudo funcionava. O italiano, no
entanto, não estava tranquilo. E tinha razão: no dia seguinte, o
rádio transmissor já ali não estaria, sumido em estranha
circunstância.
Agora,
de boina azul na mão, Massimo se consumia em consumada preocupação:
mais um soldado resumido a um sexo! Que podia ele escrever no
relatório? Que os seus homens explodiam como bolas de sabão? Na
capital, a sede da missão da ONU esperava notícias concretas,
explicações plausíveis. E o que tinha ele esclarecido? Uma meia
dúzia de estórias delirantes, no seu parecer. Sentiu-se só, com
toda África lhe pesando.
— Porca
madonna! — comentou, suspirando.
O
suspiro não lhe dava alívio. Porque ao desalento se somava um
receio: e se ele, realmente, tivesse feito amor com Temporina? As
memórias eram tão presentes e cheirosas, que ele já dava o dito
pelo feito.
— E
qual o medo, então? — perguntei.
— Você
não entende? Se eu fiz, eu fiz todo desprotegido!
— Qual
o medo maior: ter contraído doença ou ter apanhado a maldição dos
explodidos?
Quis
fazer brincadeira, aligeirar o momento. Mas Risi não riu. O que eu
pensava ser brincadeira surgiu como motivo de mais encargo. Não
tinha ele arriscado? Quem sabe, um dia destes, ele se deflagraria
como um qualquer capacete ex-azul?
— Não
pensei nisso.
—
Afinal, você acredita no feitiço?
— Sei
lá em que é que acredito.
— O
feitiço deve ser exclusivo para militares, fique descansado, Massimo
Risi.
Para
afastar as más nuvens, sugeri que ruássemos por ali, desmapeados e
sem destino. O ministro já se havia retirado deixando instruções
para o prosseguimento dos trabalhos. Massimo Risi era agora dono da
investigação, único representante do mundo na nossa pequena vila.
Passeávamos
sem destino cruzando as populosas esquinas, onde se acumulavam os
vendedeiros. Do meio da gente, deu corpo o recepcionista da pensão.
Parecia constrangido. Vinha a mando de Temporina: procurava o mano
tonto dela.
— Não
o vimos — adiantou Massimo.
O
hoteleiro chamou-me à parte. Murmurou, cauteloso:
— Esse
branco não me pode ouvir.
— E
é o quê?
— É
que o moço saiu de casa dizendo que vinha matar.
— Vinha
matar quem?
— O
italiano.
Matar
Massimo? Razões de quê? Ciúmes, quem sabe. Medo que o europeu
levasse sua irmã dali para longe. O certo é que o moço circulava
desvairado pelas ruelas de Tizangara e mesmo já se metera pelos
matos baldios. Temporina se preocupava: o moço não tinha
experiência de andar nos caminhos deste mundo.
Sosseguei
o recepcionista. Se eu visse o rapaz, o acompanharia a casa de
Hortênsia, seu lugar materno.
— Meu
lugar também — acrescentou com timidez o encarregado da
recepção. — Sou irmão afastado de Hortênsia.
— Você
é tio de Temporina?
— Fica
segredo.
Se
falavam fingimentos. Em Tizangara quem não era irmão afastado? Mas
eu aceitei. O homem me explicava como Temporina se afeiçoara à
pensão. Ela estava em família. Ninguém era prisioneiro senão de
seu próprio destino.
Alheio
a tudo isto, Massimo Risi sacudiu o casaco de invisíveis poeiras. No
instante, lhe caíram os botões. Caíram como? Certamente já
estariam meio soltos. Riu-se lembrando as letras que haviam tombado
da fachada da pensão. Se ajoelhou para apanhar os botões. Quando os
tentava recuperar, porém, viu os dedos se empenarem, empedrecidos.
Quanto mais esforço, mais desconseguia. Resolveu levantar rumo dali.
Eu não entendia o que se passava dentro dele, o homem não
articulava nem palavra. Primeiro, ainda pensou ser resultado da
bebida. Que raio de bebidas lhe andavam a dar? Mas depois, já
aterrado, viu que nem sequer se erguia. Nem desmanchava posição.
Olhou para cima foi quando viu a velha-moça da pensão. Era uma
visão de desacrer, nem de humana forma se semelhava. Massimo
balbuciou:
—
Temporina?
A
mulher lhe acariciou a cabeça. Foi essa visão que, depois, ele me
disse que tivera. Mas a moça não agia com doçura. Puxou-lhe a
testa e beijou-o como se lhe chupasse a alma pelos lábios. Depois,
pegou na mão do italiano e guiou-a pelo seu ventre, como se a
ensinasse a reconhecer uma parte que sempre fora de sua pertença.
—
Massimo Risi?
A
voz de Chupanga despertou-o como se viesse de outro mundo.
— Você
está aí caído no chão... Não diga que desmaiou?!
O
adjunto da administração chegara naquele momento e se intrigara ao
ver a cena. Ajudámo-lo a levantar-se. O europeu andou uns passos
para trás, outros para a frente. Quem sabe a si próprio se
procurava. E com razão. Afinal, ele quase se antepassara, não
lucrando para o susto. Olhou o céu, mas logo recuou os olhos: a luz
ali era demasiado limpa. Chupanga, todo viscoso, se aprontou a
conduzi-lo a uma sombra. — Sabe, eu queria ter uma conversa
consigo, assim um pouco muito privada.
O
italiano ainda estava zuezuado. Ali, no desamparo da lonjura, ele era
uma pessoa muito atropelável. Disse que preferia regressar à
pensão, mas Chupanga insistiu:
— Desde
que chegou que procuro falar consigo assim... um bocadinho muito à
parte.
Olhou
para mim de esquina. Sugeria que eu me afastasse. Mas Massimo
rejeitou. Queria que eu ficasse por perto. Para traduzir, ironizou.
Chupanga tinha um novelo na garganta, custou-lhe desatar a conversa:
— É
que eu sei muitas coisas. Mas um homem para falar necessita de
combustível.
—
Combustível?
Chupanga
me olhou, desta vez para implorar cumplicidade. Mantive-me impassível
como se eu próprio não o entendesse. E voltou à carga, volteando o
italiano:
— Pense
bem. Eu sei coisas muito valiosas. Mas necessitamos falar como homens
que se entendem, está-me acompanhar?
— Vou
pensar no assunto — despachou o estrangeiro.
— Mas,
por favor, não comente com ninguém — e virando-se para mim
acrescentou com desmodos: — Muito-muito você não fale com esse
outro aí...
— Quem?
— Com seu pai, o velho Sulplício. Eu sabia: meu velho existia fora
dos agrados governamentais. Mas o povo encontrava-lhe respeito, razão
dos antepassados que ele dispunha na eternidade. No dizer de
Chupanga, meu pai vivia em nação de bicho, era um tipo levado da
broca, todo artimanhoso. Da primeira vez que tentara falar-lhe, o
administrador sofrera o peso do ridículo. Ele ali, todo modos e
maneiras, licenças para cima, desculpas para baixo. E o outro nada,
trancado na testa, lambendo a própria língua. Isto é: não falando
português, mas a língua local. O velho Sulplício não tinha
respeito por nenhuma presença. Até que lhe deram a lição.
O
italiano levantou-se, desejava regressar a pé para a pensão. Mas o
burocrata negou. Iriam de carro que era mais seguro. Depois, ninguém
respeita quem não chega viaturizado. Chupanga apontou, ostentoso, o
carro.
— É
um turbo-diesel bastante acavalado. Todo ele tem ar-condicionado, à
frente e atrás.
Entramos
na viatura. Chupanga ligou o ar-condicionado e abriu uma lata de
cerveja. Ofereceu-nos bebida. Só eu aceitei. No caminho, o italiano
rompeu o silêncio:
— Estou
preocupado com esta situação.
— Eu
também — disse Chupanga. — Mas já mandei vir uma moldura
nova, toda inteira, lá da capital.
Chegados
à pensão, o italiano saiu do carro sem se despedir. Segui-o e notei
que o seu modo de caminhar já era mais ligeiro, ele já se mexia
como se o corpo fosse dele. Os dois nos sentamos no bar. Falamos, sem
outro motivo que não fosse encher o tempo. Eu lhe disse, a certa
altura:
— Sabe,
Massimo, tenho pena de si, tão só. Eu nunca poderia ficar tão
absolutamente sozinho.
— Por
quê?
— Mesmo
se me arrancassem daqui, se me levassem para Itália, eu não passava
assim tão mal. Porque eu sei viver no seu mundo.
— E
eu não sei viver no seu mundo?
— Não,
não sabe.
— Isso
não me interessa. Eu só quero é cumprir a minha missão. Você não
sabe como isto é importante para mim, para a minha carreira. E para
Moçambique.
Tratou
de me elucidar: a minha segurança estava nos outros, a dele estava
na sua carreira. Eu lhe senti pena. Porque ele procurava como um
cego. Não seguia o cuidado: a verdade tem perna comprida e pisa por
caminhos mentirosos. Para agravar, em Tizangara tudo ocorria de
passagem. Quem aqui vinha nunca era para ficar. Por isso, quando
chegaram, esses soldados das Nações Unidas foram chamados de
gafanhotos.
— Outra
coisa: o senhor pergunta de mais. A verdade foge de muita pergunta.
— Como
posso ter respostas se não pergunto?
— Sabe
o que devia fazer? Contar a sua estória. Nós esperamos que vocês,
brancos, nos contem vossas estórias.
— Uma
estória? Eu não sei nenhuma estória.
— Sabe,
tem que saber. Até os mortos sabem. Contam estórias pela boca dos
vivos.
— A
propósito, eu ando por aí perguntando aos outros. Mas ainda não
perguntei a si: você estava aqui quando começaram esses estrondos?
—
Estava.
— Então
você acompanhou tudo. Me conte. Me conte tudo desde que começaram
os rebentamentos. Espere. Espere que eu quero gravar. Não se
importa?
Mia
Couto, in O
último voo do flamingo
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