Um
rato, de pé sobre as patinhas traseiras, rilha uma casquinha de pão,
observando os companheiros que se espalham nervosos por sobre a
imundície, como personagens de um videogame. Outro, mais ousado,
experimenta mastigar um pedaço de pano emplastrado de cocô mole,
ainda fresco, e, desazado, arranha algo macio e quente, que
imediatamente se mexe, assustando-o. No após, refeito, aferra os
dentinhos na carne tenra, guincha. Excitado, o bando achega-se, em
convulsões.
O
corpinho débil, mumificado em trapos fétidos, denuncia o incômodo,
o músculo da perna se contrai, o pulmão arma-se para o berreiro,
expele um choramingo entretanto, um balbucio de lábios magoados, um
breve espasmo. A claridade envergonhada da manhã penetra desajeitada
pelo teto de folhas de zinco esburacadas, pelos rombos nas paredes de
placas de outdoors. Mas, é noturno ainda o barraco.
A
chupeta suja, de bico rasgado, que o bebê mordiscava, escapuliu
rolando por sob a irmãzinha de três anos, que, a seu lado, suga o
polegar com a insaciedade de quando mamava nos seios da mãe. O
peitinho chiou o sono inteiro e ela tossiu e chorou, porque o
cobertor fino, muxibento, que ganharam dos crentes, o irmãozinho de
seis anos enrolou-se nele.
O
colchão-de-mola-de-casal onde se aninham sobreveio numa tarde úmida,
manchas escuras desenhando o pano rasgado, locas vomitando pó,
aboletado no teto de uma kombi de carreto, vencendo toda a Estrada de
Itapecerica, em-desde a Vila Andrade até o Jardim Irene, quando
viviam com o Birôla, homem bom, ele. Uma vez levou a meninada no
circo, palhaços, cachorro ensinado roupinha-de-balé, macaco de
velocípede, domador chicoteando leão desdentado em-dentro da jaula,
cavalos destros, trapezista, equilibrista, pipoca, engolidor de
espadas, maçã-do-amor, moças de maiô, algodão-doce, serrador de
gente, pirulito, sorvete de palito. Aí começou a abusar da mais
velha, agora de-maior, mas na época treze anos. Enfezada, despejou
álcool nas partes, riscou cabeça de fósforo, o fogo ardeu a
vizinhança, salvou os filhos, mas o tal, aquele, em sonhos de crack
torrou, carvão indigente.
Dele
herdou o menino, oito anos, seu escarro, hominho. Ano passado, ou
em-antes, ignora, estourou a coceira, as costas, a barriga, as
pernas, uma ferida só, coitado. Internado, as enfermeiras nem um pio
ouviram, reclamaçãozinha alguma, uma graça. Levou bronca do
doutor, Absurdo, falou, Irresponsável, berrou, disse para a mulher
assistente-social acompanhar, Sarna, ela nem as caras deu.
Pensam,
é fácil, mas forças não tem mais, embora seus trinta e cinco
anos, boca desbanguelada, os ossos estufados os olhos, a pele ruça,
arquipélago de pequenas úlceras, a cabeça zoeirenta. E lêndeas
explodem nos pixains encipoados das crianças e ratazanas procriam no
estômago do barraco e percevejos e pulgas entrelaçam-se aos fiapos
dos cobertores e baratas guerreiam nas gretas. Já pediu-implorou
para a de treze ajudar, mas, rueira, some, dias e noites. Viu ela
certa vez carro em carro filando trocado num farol da avenida
Francisco Morato. Quando o frio aperta, aparece.
A
de onze, ajuizada, cria os menorzinhos: carrega eles para comer na
sopa-dos-pobres, leva eles para tomar banho na igreja dos crentes,
troca a roupa deles, toma conta direitinho, a danisca. E faz eles
dormirem, contando invencionices, coisas havidas e acontecidas,
situações entrefaladas no aqui e ali. Faz gosto: no breu, a vozinha
dela, encarrapichada no ursinho-de-pelúcia que naufragava na
enxurrada, encaverna-se sonâmbula ouvidos adentro, inoculando sonhos
até mesmo na mãe, que geme baixinho num canto, o branco-dos-olhos
arreganhado sob o vaivém de um corpo magro e tatuado, mais um nunca
antes visto.
Luiz
Ruffato, in Eles eram muitos cavalos
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