Numa
tarde distante vi o rosto de uma moça na janela de um ônibus cinza,
empoeirado, um dos ônibus feios e velhos de Brasília. Esqueci a
feiura do ônibus, por uns minutos esqueci que eu era um dos
passageiros de outro ônibus cinza e feio. Mas não esqueci que eu
devia saltar na avenida W3-Sul.
Enquanto
os dois ônibus andavam lado a lado, eu olhava os olhos claros de um
rosto que me olhava, um rosto moreno e sério, mais bonito que sério.
E o céu de Brasília, azul sem manchas, brilhava naquela tarde
nervosa.
Meu
ônibus ficou para trás, vi que o outro ia parar na rodoviária e
então interrompi meu itinerário, saltei no setor hoteleiro e
caminhei até a estação.
Procurei
na plataforma de desembarque o rosto moreno de olhos verdes. Havia
mais soldados que passageiros na tarde de ar seco. Brasília era uma
cidade policiada dia e noite, e assustadora naquela tarde em que
procurava uma moça mais velha do que eu, ou menos jovem, porque eu
tinha dezesseis anos e nunca soube a idade dela. Ainda a vi na fila
de passageiros, mais alta que os homens e mulheres humildes que
mourejavam na capital faraônica. Usava um vestido branco e não
totalmente opaco. Quando andei para alcançá-la, ela entrou num
ônibus que ia para Sobradinho. Ou seria Planaltina? Não recordo o
destino exato, mas tenho certeza de que nos despedimos com um olhar,
depois com um aceno tímido, e não vi tristeza no rosto que viajava
para uma cidade-satélite.
Fiquei
parado na plataforma, pensando como tinha sido covarde. Eu devia ter
entrado naquele ônibus, mas alguns amigos me esperavam na W3. Minha
ausência nesse encontro não seria um ato covarde? Decidi caminhar
até a calçada da loja Comfort, nosso ponto de encontro. Dois amigos
me esperavam dentro da loja, daqui a pouco chegariam outros, talvez
um ou dois inimigos, dedos-duros disfarçados de estudantes, jovens
cooptados pela repressão.
O
gerente da Comfort pediu que saíssemos, a loja seria fechada por
causa da baderna, e a baderna significava: uma passeata. Antes de
atravessarmos a W3-Sul, um amigo me entregou um pacote de panfletos e
murmurou o lugar da panfletagem, que seria feita antes do discurso do
presidente da UNE. Em seguida nos dispersamos, sabendo que não nos
encontraríamos mais naquela tarde.
As
viaturas apareceram e bloquearam a avenida, e enquanto eu deixava
panfletos na porta das casas, recordava o rosto da moça, o aceno
demorado com a mão direita, o sorriso, e quando estalaram os
primeiros estampidos de bombas de gás, percebi que o cerco policial
se completava e que a passeata seria um fiasco.
De
longe, vi pessoas correndo e sendo espancadas: alunos do Elefante
Branco, do colégio de aplicação e da Universidade de Brasília,
professores, funcionários, talvez alguns políticos. Na correria os
panfletos escaparam de minhas mãos e, quando parei para apanhar as
folhas de papel, escutei uma voz dizer:
“É
melhor você largar isso e entrar em casa. A polícia vai chegar
logo.”
Reconheci
o homem: tinha sido meu senhorio quando desembarquei na capital.
Entramos na casa dele, vi os mesmos objetos na sala pequena, onde
dois meninos brincavam com um bebê sentado no chão.
“Fez
oito meses”, disse o homem, apontando para o bebê. “Você pode
jantar e dormir aqui.”
Eu
disse que ia esperar uma ou duas horas e depois iria embora.
“Vão
te pegar”, ele advertiu. “E vão descobrir que você estava aqui.
Tenho três filhos, não quero encrenca com a polícia.”
Conversamos
pouco: naquela época todos desconfiavam de todos. Pensei em ir
embora depois do jantar, mas a W3 estava cercada por viaturas da
polícia; da janela da sala eu podia ver caminhões e capacetes
verdes, dali a pouco seria noite e não me lembro de crepúsculo nem
de céu com estrelas.
Jantei
com o homem e a mulher dele. Não me perguntaram nada sobre política
nem movimento estudantil. Ele era funcionário da Novacap, e a mulher
cuidava da casa e dos filhos. Disse a eles que morava na Asa Norte e
estudava no colégio de aplicação da UnB.
Entrei
no quarto onde havia dormido em 1968. Pensei nos meus amigos, não
consegui dormir. Os únicos livros da sala eram os volumes de uma
enciclopédia. Li ao acaso alguns verbetes, conheci animais e plantas
estranhos, saltei do Distrito Federal para a África, depois procurei
a palavra Brasília, mas não a encontrei. A Capital ainda não
existia naquela enciclopédia, mas isso não me alegrou nem me
entristeceu. Antes de amanhecer, passei da África para a Ásia,
escrevi um poema sobre a guerra do Vietnã, lembro que esse texto foi
publicado no Correio Braziliense e logo esquecido. Depois
pensei no rosto anguloso, moreno, pensei nos olhos verdes, no corpo
que o vestido branco moldava. Um corpo e um olhar que mereciam um
poema, mas só agora me dei conta disso.
Nunca
mais vi aquela moça, nem a reconheceria se olhasse para mim da
janela de um ônibus em qualquer cidade do Brasil. Tampouco ela me
reconheceria: seríamos dois estranhos pensando em coisas diferentes,
em milhares de coisas diferentes, porque a vida não parou naquela
tarde ensolarada de 1969.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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