sábado, 1 de abril de 2017

Um sexo avultado e avulso

O mundo não é o que existe, mas o que acontece.
Dito de Tizangara

Nu e cru, eis o fato: apareceu um pênis decepado, em plena Estrada Nacional, à entrada da vila de Tizangara. Era um sexo avulso e avultado. Os habitantes relampejaram-se em face do achado. Vieram todos, de todo lado. Uma roda de gente se engordou em redor da coisa. Também eu me cheguei, parado nas fileiras mais traseiras, mais posto que exposto. Avisado estou: atrás é onde melhor se vê e menos se é visto. Certo é o ditado: se a agulha cai no poço muitos espreitam, mas poucos descem a buscá-la.
Na nossa vila, acontecimento era coisa que nunca sucedia. Em Tizangara só os fatos são sobrenaturais. E contra fatos tudo são argumentos. Por isso, tudo acorreu, ninguém arredou. E foi o inteiro dia, uma roda curiosa, cozinhando rumores. Vocabuliam-se dúvidas, instantaneavam-se ordens:
Alguém que apanhe... a coisa, antes que ela seja atropelada.
Atropelada ou atropilada?
Coitado, o gajo ficou manco central!
A gentania se agitava, bazarinhando. Estava-se naquele aparvalhamento quando alguém avistou, suspenso no céu, um boné azul.
Olhem, lá, no cimo da árvore!
Era um desses bonés dos soldados das Nações Unidas. Pendurado num galho, balançava na vontade das brisas. No instante que se confirmou a identidade da boina foi como navalha golpeando a murmuração. E logo-logo a multidão se irresponsabilizou. Não valia a pena empernar na confusão. E a gente se dispersou, imediata, comentando que nada acontecera, até admiravam tanto o que nunca haviam visto. E desfalavam:
Agora é que vem aí chuva de molhar vento.
Sim, é melhor voltarmos às vidas.
Se emborem, pá!
E destroçaram, todos destrocados. Sobre o asfalto quente ficou o apêndice órfão. No ramo seco restou o chapéu missionário, plenamente só no meio das aragens. Azul em fundo azul.
Sobrei para ali, sozinho, com um estranho pressentimento. Em minha alma, um espinho me magoava. Eu, a dizer, retirava o fel do vinagre. Aquilo não era ainda o sucedimento, mas os preparativos de sua chegada. Quando o silêncio clareia é que se escutam os escuros presságios. Foi nesse momento que me surpreendeu a voz, esbaforida:
Está ser chamado!
Chamado, eu?
Eu conhecia mais que bem o mensageiro: era Chupanga, o adjunto do administrador. Homem mucoso, subserviente — um engraxa-botas. Como todo o agradista: submisso com os grandes, arrogante com os pequenos. O fulano me fingia desconhecer, ocupado em suas superiores aparências. Ainda tentei um aperto de mão, mas logo ele foi atalhando o tempo. O burro, na companhia do leão, já não cumprimenta o cavalo.
Não é você que fala afluentemente as outras línguas?
Falo umas línguas, sim.
Línguas locais ou mundiais?
Umas e outras. Umas, de estrada. Outras, de corta-mato.
O mensageiro bateu os tacões das botas, moda os militares. Esse ruído, singelo que era, me soou como um aviso. Parecia um anjo escapando pelos arredores dos ares. E, realmente, era. Os anjos é que veem o que não se passa. No exato desse momento, começavam os primeiros problemas, esquinas onde o meu destino se haveria de labirintoar. Fora de mim, a voz de Chupanga insistia:
Está ser chamado por Sua Excelência.
Sua Excelência era o administrador. Ordem daquelas não se duvida. Ouvimos, calamos e fazemos de conta que, calados, obedecemos. Nem vale a pena invocar ousadia. Existe um alguém a quem primeiro nascem os dentes e só depois os lábios? Quanto mais um lugar é pequenito, maior é o tamanho da obediência.
Foi assim que, momentos depois, desemboquei direito e direto na sede da administração. Era o mesmo edifício dos tempos coloniais, já depurado de espíritos. O casarão tinha sido tratado pelos feiticeiros, consoante as crenças. A voz de comando se abreviou, de afiados cantos:
Entre, meu amigo. Precisamos de seus serviços.
Estêvão Jonas, o administrador da vila, ocupava a inteira largura da porta. A preocupação pingava-lhe no rosto. Um lenço branco ia e vinha a lhe enxugar a testa. Um gerador enchia tudo de ruído e o administrador teve que forçar a voz:
Entre, meu camarada... isto é, meu amigo.
Entrei. Dentro havia mais fresco. No teto, uma ventoinha espanejava o ar. Eu sabia, como todos na vila: o administrador Jonas tinha desviado o gerador do hospital para seus mais privados serviços. Dona Ermelinda, sua esposa, tinha vazado os equipamentos públicos das enfermarias: geleiras, fogão, camas. Até saíra num jornal da capital que aquilo era abuso do poder. Jonas ria-se: ele não abusava; os outros é que não detinham poderes nenhuns. E repetia o ditado: cabrito come onde está amarrado.
Mandei-lhe chamar porque precisamos de uma ação mais que imediata.
O administrador até enrugava a voz. Com razão e motivo: uma delegação oficial devia estar prestes a chegar. Vinha investigar o caso do sexo decepado. Haviam de vir os do governo de dentro, mais os do governo de fora. Até das Nações Unidas viriam. Vinham investigar o caso do sexo decepado. E os outros casos que envolviam os capacetes azuis desaparecidos. Nunca a vila de Tizangara tinha recebido tais altas individualidades. A voz do administrador Estêvão Jonas tremia quando apontou para mim e disse:
Pois você fica, de imediato, nomeado tradutor oficial.
Tradutor? Mas para que língua?
Isso não interessa nada. Qualquer governo prezável tem seus tradutores. Você é o meu tradutor particular. Está compreender?
Não entendia, mas aprendera que, em Tizangara, nada necessita de entendimento. Ainda pigarreei para sugerir minhas objeções. Foi quando deu entrada Dona Ermelinda, a respectiva do administrador. Ela se fazia conhecer como “a Primeira Dama”. Olhou-me como se eu não chegasse sequer a ser gente. E falou, prestando grandes favores ao mundo:
Dizem que vem um italiano e que vai ficar aqui a fazer a investigação. Você fala italiano?
Eu não.
Ótimo. Porque os italianos nunca falam italiano.
Mas, desculpe, senhor administrador, traduzo para qual língua?
Inglês, alemão. Uma qualquer, desenrasca-se.
A administratriz de novo se interpôs, deixando invisível o esposo. Falava ajeitando o turbante e sacudindo as longas túnicas. Ermelinda clamava que eram vestes típicas de África. Mas nós éramos africanos, de carne e alma, e jamais havíamos visto tais indumentárias. No momento, ela reiterava:
O que eu quero, em tanto que Ermelinda, é que eles fiquem a saber que nós, em Tizangara, temos tradução simultânea.
Remexeu nos dedos, ajeitando os enfeites. Ela exibia mais anéis que Saturno. Virando-se para o marido, quis saber se tinham mandado chamar a cultura.
A cultura?
Sim, os grupos de dança.
Eles não hão-de aceitar vir. Sem pagamento não aceitam.
Mas será que nesta terra já ninguém faz nada só por vontade do amor?
A Primeira Dama mais quis saber: se o povo ainda se concentrava na estrada. Porque ela pretendia realizar uma visita oficial ao local da ocorrência. O marido, incomodado, perguntou:
Vai ver aquilo, Ermelinda?
Vou.
Sabe que coisa está ali, desfalecida, no meio da estrada?
Sei.
Eu não acho bem, uma mulher com o seu estatuto... com aquela gente toda a ver.
Vou, mas não como Ermelinda. Desloco-me oficialmente em tanto que Primeira Dama. E, entretanto, mande tirar aquela gentalha dali.
Mas como é que posso dispersar as massas?
Eu já não disse para você comprar as sirenes? Lá, na Nação, os chefes não andam com sirene?
E saiu, com portes de rainha. No limiar da porta sacudiu as madeixas, fazendo tilintar os ouros, multiplicados em vistosos colares no vasto colo.
Mia Couto, in O último voo do flamingo

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