O
mundo não é o que existe, mas o que acontece.
Dito
de Tizangara
Nu
e cru, eis o fato: apareceu um pênis decepado, em plena Estrada
Nacional, à entrada da vila de Tizangara. Era um sexo avulso e
avultado. Os habitantes relampejaram-se em face do achado. Vieram
todos, de todo lado. Uma roda de gente se engordou em redor da coisa.
Também eu me cheguei, parado nas fileiras mais traseiras, mais posto
que exposto. Avisado estou: atrás é onde melhor se vê e menos se é
visto. Certo é o ditado: se a agulha cai no poço muitos espreitam,
mas poucos descem a buscá-la.
Na
nossa vila, acontecimento era coisa que nunca sucedia. Em Tizangara
só os fatos são sobrenaturais. E contra fatos tudo são argumentos.
Por isso, tudo acorreu, ninguém arredou. E foi o inteiro dia, uma
roda curiosa, cozinhando rumores. Vocabuliam-se dúvidas,
instantaneavam-se ordens:
—
Alguém que apanhe... a coisa, antes
que ela seja atropelada.
—
Atropelada ou atropilada?
—
Coitado, o gajo ficou manco central!
A
gentania se agitava, bazarinhando. Estava-se naquele aparvalhamento
quando alguém avistou, suspenso no céu, um boné azul.
—
Olhem, lá, no cimo da árvore!
Era
um desses bonés dos soldados das Nações Unidas. Pendurado num
galho, balançava na vontade das brisas. No instante que se confirmou
a identidade da boina foi como navalha golpeando a murmuração. E
logo-logo a multidão se irresponsabilizou. Não valia a pena
empernar na confusão. E a gente se dispersou, imediata, comentando
que nada acontecera, até admiravam tanto o que nunca haviam visto. E
desfalavam:
— Agora
é que vem aí chuva de molhar vento.
— Sim,
é melhor voltarmos às vidas.
— Se
emborem, pá!
E
destroçaram, todos destrocados. Sobre o asfalto quente ficou o
apêndice órfão. No ramo seco restou o chapéu missionário,
plenamente só no meio das aragens. Azul em fundo azul.
Sobrei
para ali, sozinho, com um estranho pressentimento. Em minha alma, um
espinho me magoava. Eu, a dizer, retirava o fel do vinagre. Aquilo
não era ainda o sucedimento, mas os preparativos de sua chegada.
Quando o silêncio clareia é que se escutam os escuros presságios.
Foi nesse momento que me surpreendeu a voz, esbaforida:
— Está
ser chamado!
—
Chamado, eu?
Eu
conhecia mais que bem o mensageiro: era Chupanga, o adjunto do
administrador. Homem mucoso, subserviente — um engraxa-botas. Como
todo o agradista: submisso com os grandes, arrogante com os pequenos.
O fulano me fingia desconhecer, ocupado em suas superiores
aparências. Ainda tentei um aperto de mão, mas logo ele foi
atalhando o tempo. O burro, na companhia do leão, já não
cumprimenta o cavalo.
— Não
é você que fala afluentemente as outras línguas?
— Falo
umas línguas, sim.
—
Línguas locais ou mundiais?
— Umas
e outras. Umas, de estrada. Outras, de corta-mato.
O
mensageiro bateu os tacões das botas, moda os militares. Esse ruído,
singelo que era, me soou como um aviso. Parecia um anjo escapando
pelos arredores dos ares. E, realmente, era. Os anjos é que veem o
que não se passa. No exato desse momento, começavam os primeiros
problemas, esquinas onde o meu destino se haveria de labirintoar.
Fora de mim, a voz de Chupanga insistia:
— Está
ser chamado por Sua Excelência.
Sua
Excelência era o administrador. Ordem daquelas não se duvida.
Ouvimos, calamos e fazemos de conta que, calados, obedecemos. Nem
vale a pena invocar ousadia. Existe um alguém a quem primeiro nascem
os dentes e só depois os lábios? Quanto mais um lugar é pequenito,
maior é o tamanho da obediência.
Foi
assim que, momentos depois, desemboquei direito e direto na sede da
administração. Era o mesmo edifício dos tempos coloniais, já
depurado de espíritos. O casarão tinha sido tratado pelos
feiticeiros, consoante as crenças. A voz de comando se abreviou, de
afiados cantos:
—
Entre, meu amigo. Precisamos de seus
serviços.
Estêvão
Jonas, o administrador da vila, ocupava a inteira largura da porta. A
preocupação pingava-lhe no rosto. Um lenço branco ia e vinha a lhe
enxugar a testa. Um gerador enchia tudo de ruído e o administrador
teve que forçar a voz:
—
Entre, meu camarada... isto é, meu
amigo.
Entrei.
Dentro havia mais fresco. No teto, uma ventoinha espanejava o ar. Eu
sabia, como todos na vila: o administrador Jonas tinha desviado o
gerador do hospital para seus mais privados serviços. Dona
Ermelinda, sua esposa, tinha vazado os equipamentos públicos das
enfermarias: geleiras, fogão, camas. Até saíra num jornal da
capital que aquilo era abuso do poder. Jonas ria-se: ele não
abusava; os outros é que não detinham poderes nenhuns. E repetia o
ditado: cabrito come onde está amarrado.
—
Mandei-lhe chamar porque precisamos de
uma ação mais que imediata.
O
administrador até enrugava a voz. Com razão e motivo: uma delegação
oficial devia estar prestes a chegar. Vinha investigar o caso do sexo
decepado. Haviam de vir os do governo de dentro, mais os do governo
de fora. Até das Nações Unidas viriam. Vinham investigar o caso do
sexo decepado. E os outros casos que envolviam os capacetes azuis
desaparecidos. Nunca a vila de Tizangara tinha recebido tais altas
individualidades. A voz do administrador Estêvão Jonas tremia
quando apontou para mim e disse:
— Pois
você fica, de imediato, nomeado tradutor oficial.
—
Tradutor? Mas para que língua?
— Isso
não interessa nada. Qualquer governo prezável tem seus tradutores.
Você é o meu tradutor particular. Está compreender?
Não
entendia, mas aprendera que, em Tizangara, nada necessita de
entendimento. Ainda pigarreei para sugerir minhas objeções. Foi
quando deu entrada Dona Ermelinda, a respectiva do administrador. Ela
se fazia conhecer como “a Primeira Dama”. Olhou-me como se eu não
chegasse sequer a ser gente. E falou, prestando grandes favores ao
mundo:
— Dizem
que vem um italiano e que vai ficar aqui a fazer a investigação.
Você fala italiano?
— Eu
não.
—
Ótimo. Porque os italianos nunca
falam italiano.
— Mas,
desculpe, senhor administrador, traduzo para qual língua?
—
Inglês, alemão. Uma qualquer,
desenrasca-se.
A
administratriz de novo se interpôs, deixando invisível o esposo.
Falava ajeitando o turbante e sacudindo as longas túnicas. Ermelinda
clamava que eram vestes típicas de África. Mas nós éramos
africanos, de carne e alma, e jamais havíamos visto tais
indumentárias. No momento, ela reiterava:
— O
que eu quero, em tanto que Ermelinda, é que eles fiquem a saber que
nós, em Tizangara, temos tradução simultânea.
Remexeu
nos dedos, ajeitando os enfeites. Ela exibia mais anéis que Saturno.
Virando-se para o marido, quis saber se tinham mandado chamar a
cultura.
— A
cultura?
— Sim,
os grupos de dança.
— Eles
não hão-de aceitar vir. Sem pagamento não aceitam.
— Mas
será que nesta terra já ninguém faz nada só por vontade do amor?
A
Primeira Dama mais quis saber: se o povo ainda se concentrava na
estrada. Porque ela pretendia realizar uma visita oficial ao local da
ocorrência. O marido, incomodado, perguntou:
— Vai
ver aquilo, Ermelinda?
— Vou.
— Sabe
que coisa está ali, desfalecida, no meio da estrada?
— Sei.
— Eu
não acho bem, uma mulher com o seu estatuto... com aquela gente toda
a ver.
— Vou,
mas não como Ermelinda. Desloco-me oficialmente em tanto que
Primeira Dama. E, entretanto, mande tirar aquela gentalha dali.
— Mas
como é que posso dispersar as massas?
— Eu
já não disse para você comprar as sirenes? Lá, na Nação, os
chefes não andam com sirene?
E
saiu, com portes de rainha. No limiar da porta sacudiu as madeixas,
fazendo tilintar os ouros, multiplicados em vistosos colares no vasto
colo.
Mia
Couto, in O último voo do flamingo
Nenhum comentário:
Postar um comentário