Nasci
nas Minas Gerais. Minas não tem mar. Minas tem montanhas, matas e
tem céu. É aí que me sinto em casa. Uma ialorixá, sem que eu
perguntasse, me revelou que meu orixá era Oxóssi, o guarda das
matas. Acreditei. E, por causa disso, quase fiz uma loucura. Estava
no aeroporto, vi uma loja de arte, entrei para ver, e o que vi me
fascinou: uma coleção de máscaras de orixás, assombrosas,
fascinantes. Entre elas, a máscara do meu orixá, Oxóssi. Perguntei
o preço. Muito cara. Mas eu estava em transe, enfeitiçado. Puxei o
talão de cheques. “Vou levar”, eu disse para a vendedora. “O
seu cartão de embarque, por favor”, ela disse. Mostrei. “Mas o
seu voo é doméstico. E essa loja só vende artigos para voos
internacionais.” Saí triste, sem o meu Oxóssi.
Minas
não tem mar. Lá, quem quiser navegar tem de aprender que o mar de
Minas é em outro lugar.
O
mar de Minas não é no mar.
O
mar de Minas é no céu,
pro
mundo olhar pra cima e navegar
sem
nunca ter um porto onde chegar.
Acho
que é por isso que em Minas nasce tanto poeta. Poeta é quem navega
nos céus.
Comecei
a navegar no mar de Minas quando era menino. Me deitava no capim e
ficava vendo as nuvens e os urubus. Pensava poesia sem saber que era
poesia. A Adélia diz que poesia é quando a gente olha para uma
pedra e vê outra coisa. Como no famoso poema do Drummond: “No meio
do caminho tinha uma pedra...” Estou certo de que essa pedra que
ele via era outra coisa cujo nome ele não podia dizer. Pois eu
ficava olhando para as nuvens e não via as nuvens: via navios,
bichos, rostos, monstros. As nuvens me ensinaram minha primeira lição
de filosofia. Elas me ensinaram a filosofia de Heráclito: “Tudo
flui, nada permanece”. “Sou e não sou no que estou sendo”
(Cecília). Todo ser é um permanente deixar de ser. A vida acontece
morrendo. Como o rio. Como a chama.
Meus
mestres navegadores eram os urubus. Desajeitados em terra, não
conheço poeta que tenha falado deles com carinho. É romântico
dizer da amada que ela se parece com uma garça branca. Mas quem
diria que ela se parece com um urubu? Que eu saiba, somente a Cecília
viu a sua beleza:
Até
os urubus são belos
no
largo círculo dos dias sossegados.
Urubus
voam sem bater asas. Nas alturas, apenas as inclinam ligeiramente
para flutuar ao sabor do vento. Voam sem fazer nada. Fazer nada é o
seu jeito de fazer, para voar. Deixam-se ser levados. Flutuam ao
sabor do vento. São mestres do taoísmo.
O
mar de água, eu só fui ver depois que me mudei para o Rio.
Debruçado na amurada de pedra da praia de Botafogo, ficava a ver os
barcos de velas brancas levados pelo vento. Como as garças, voando
no céu de Minas.
O
mar me fascina. Mas, como não sou do mar, sou das matas, não vou. O
mar me dá medo. Mar é perigo, naufrágio. Disse Fernando Pessoa,
gravemente: “Deus ao mar o perigo e o abismo deu...” Ele,
português, sabia do que estava falando.
Ó
mar salgado, quanto do teu sal
São
lágrimas de Portugal!
Por
te cruzarmos,
quantas
mães choraram,
Quantos
filhos em vão rezaram!
Quantas
noivas ficaram por casar
Para
que fosses nosso, ó mar!
Sabia
disso Dorival Caymi quando cantou o jangadeiro que entrou no mar e a
jangada voltou só. Doce morrer no mar? Talvez. Melhor morrer no
mistério indecifrável do mar que morrer as mortes banais da terra
seca.
Mas
o perigo não importa. O fascínio é maior. Somos os únicos seres
que amam o perigo. Sabia disso a Cecília, que nasceu olhando o mar.
A
solidez da terra, monótona,
parece-nos
fraca ilusão.
Queremos
a ilusão grande do mar,
multiplicada
em suas malhas de perigo.
Queremos
sua solidão robusta,
uma
solidão para todos os lados,
uma
ausência humana
que
se opõe ao mesquinho formigar do mundo.
Lá
está o barquinho de velas brancas, navegando no mar! Bem que ele
poderia navegar só nas baías e enseadas, onde não há perigo e o
mar é sempre manso. Mas não! Deixando a solidez da terra firme, ele
se aventura para sentir o vento forte enfunando as velas e o salpicar
da água salgada que salta da quilha contra as ondas. “Sem nunca
ter um porto onde chegar”, ele navega pelo puro prazer de entrar no
mar.
A
vida é assim mesmo. É sempre possível deixar o barco atracado ou
só navegar nas baías mansas. Aí não há perigo de naufrágio. Mas
não há o prazer do calafrio e do desconhecido.
Segundo
o taoísmo, a vida é assim: somos pequenos barcos de velas brancas
no mar desconhecido. O remos são inúteis. A força dos elementos é
maior que a nossa força. Gosto de ver os urubus voando nos
prenúncios de tempestade. Eles não batem asas. Não lutam contra o
vento. Flutuam, deixam-se levar. A sabedoria dos barcos a vela é a
mesma sabedoria dos urubus. Brincar com vento e onda, vela e leme, e
deixar-se ser levado. A sabedoria suprema não é fazer – remar –,
mas não fazer nada, deixar-se levar pelo mar da vida que é mais
forte. Eu nunca consegui chegar a lugar algum usando remos. Sempre
fui levado por uma força mais forte que a minha razão a praias com
que nunca havia sonhado. Foi assim que me tornei escritor, porque o
mar foi mais forte que o meu plano de viagem.
De
fato,
Deus
ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas
nele é que espelhou o céu.
Talvez
seja por isso que os navegadores navegam: porque no perigo e no
abismo eles veem refletida a eternidade.
Rubem
Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente
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