Tendo
lidado com problemas de enxerto de pele, fiquei sabendo que um banco
de doação de pele não é viável, pois esta, sendo alheia, não
adere por muito tempo à pele do enxertado. É necessário que a pele
do paciente seja tirada de outra parte de seu corpo, e em seguida
enxertada no lugar necessário. Isto quer dizer que no enxerto há
uma doação de si para si mesmo.
Esse
caso me fez devanear um pouco sobre o número de outros em que a
própria pessoa tem que doar a si própria. O que traz solidão, e
riqueza, e luta. Cheguei a pensar na bondade que é tipicamente o que
se quer receber dos outros – e no entanto às vezes só a bondade
que doamos a nós mesmos nos livra da culpa e nos perdoa. E é
também, por exemplo, inútil receber a aceitação dos outros,
enquanto nós mesmos não nos doarmos a autoaceitação do que somos.
Quanto à nossa fraqueza, a parte mais forte nossa é que tem que nos
doar ânimo e complacência. E há certas dores que só a nossa
própria dor, se for aprofundada, paradoxalmente chega a amenizar.
No
amor felizmente a riqueza está na doação mútua. O que não
significa que não haja luta: é preciso se doar o direito de receber
amor. Mas lutar é bom. Há dificuldades que só por serem
dificuldades já esquentam o nosso sangue, que este felizmente pode
ser doado.
Lembrei-me
de outra doação a si mesmo: o da criação artística. Pois em
primeiro lugar por assim dizer tenta-se tirar a própria pele para
enxertá-la onde é necessário. Só depois de pegado o enxerto é
que vem a doação aos outros. Ou é tudo misturado, não sei bem, a
criação artística é um mistério que me escapa, felizmente. Não
quero saber muito.
Clarice
Lispector, in Aprendendo a viver
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