O
homem se via envelhecer, sem protesto contra o tempo. Ansiava, sim,
que a morte chegasse. Que chegasse tão sorrateira e morna como lhe
surgiram as mulheres da sua vida. Nessa espera não havia amargura.
Ele se perguntava: de que valia ter vivido tão bons momentos se já
não se lembrava deles, nem a memória de sua existência lhe
pertencia? Em hora de balanço: nunca tivera do que fosse dono, nunca
houve de quem fosse cativo. Só ele teve o que não tinha posse:
saudade, fome, amores.
Como
a morte tardasse, decidiu meter se na estrada e caminhar ao seu
encontro. Tomou a direção do oeste. Na sombra desse ponto cardeal,
todos sabemos, se encontra a moradia da morte.
Iniciou
a sua excursão rumo ao poente sem que de ninguém se despedisse. Os
adeuses são assunto dos vivos e ele se queria já na outra vertente
do tempo.
Caminhava
há semanas quando avistou um homem alto, com rosto de enevoados
traços. Trazia pela trela um bicho estranho, entre cão e hiena.
Animal mal aparentado, com ar maleitoso.
— Esta
é a Morte — disse o homem apontando o cão. E acrescentou: — Sou
eu que a passeio pelo mundo.
— E
você quem é?
— Eu
sou o Tempo.
E
explicou que caminhavam assim, atrelados um no noutro, desde sempre.
Ultimamente, porém, a Morte andava esmorecida, quase desqualificada.
Razão de que, entre os viventes, se desfalecia agora a molhos
vistos, por dar cá nenhuma palha. Morria se mesmo sem intervenção
dela, da Morte.
O
velho, desiludido, explicou ao Tempo a razão da sua viagem. Ele
vinha ao encontro da morte:
— Eu
queria que ela me levasse para o sem retorno.
— Vai
ser difícil.
— Lhe
imploro: fiz todo este caminho para ela me levar.
— Veja
como ela anda: desmotivada, focinho pelo chão.
— Mas
eu queria tanto terminar me!
Impossível,
insistiu o Tempo. E para comprovar, soltou o animal. O bicho se
afastou, arrastado e agônico, para o fundo de uma valeta. Ali se
enroscou, decadente como um pano gasto. O velho se condoeu e
perguntou ao bicho:
— O
que posso fazer por si?
— Eu
só quero beber.
Não
era de água a sua sede. Queria palavras. Não dessas de uso e abuso
mas palavras tenras como o capim depois da chuva. Essas de reacender
crenças. O velho prometeu garimpar entre todos seus vocabulários e
encontrar lá os materiais de reanimar o mais perdido fôlego. Urdia
seu secreto plano: iria ao sonho e de lá retiraria uma porção de
palavras.
Na
manhã seguinte, foi de encontro à besta moribunda. O bicho estava
agora mais hiena que cão. Uma baba amarela lhe escorria pelo
focinho. Apenas revirou os olhos quando sentiu o homem se aproximar.
—
Trouxe?
Ele
lhe entregou o sonho, as palavras, mais seu inebriamento. O animal
sugou tudo aquilo com voracidade. Seus olhos eram os de uma criança
sorvendo estória antes do sono.
E
assim se seguiu durante umas manhãs. Em cada uma, o velho se
anichava e confiava seus elixires. De cada vez, o bicho se animava
mais um pouco. No final, a Morte se recompôs com tais pujanças que
o velho ganhou coragem e lhe apresentou o pedido, seu anseio de que o
mundo se lhe fechasse. A Morte escutou o pedido de olhos fechados.
—
Amanhã vou cumprir o meu mandato —
anunciou ela.
Nessa
noite, o velho nem dormiu, posto perante a sua última noite.
Sentindo se derradeirar, passou em revista a vida. Nos últimos anos,
ele tinha perdido a inteira memória. Mas agora, naquela noite, lhe
revieram os momentos de felicidade, toda a sua existência se lhe
desfilou. E sentiu saudade, melancolia por não poder revisitar
amigos, terras e mulheres. Até lhe assaltou a ideia de escapar dali
e reganhar aventuras no caminho da vida. Para não ser atacado por
mais recordações — com o risco do arrependimento — ele foi ao
rio e caminhou ao sabor da corrente. Andar no sentido da água é o
modo melhor para nos lavarmos das lembranças.
No
dia seguinte, o velho foi à valeta onde encontrou a Morte. Ela
estava cansada, respiração ofegante. E disse:
— Já
matei.
—
Matou? Matou quem?
— Matei
o Tempo.
E
apontou o corpo desfalecido do homem alto. A hiena, então, estendeu
a trela ao velho e lhe ordenou:
—
Agora, leva me tu a passear!
Mia
Couto, in Na berma de nenhuma estrada
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