segunda-feira, 20 de março de 2017

A hora e a vez de Augusto Matraga (trecho)


Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Estêves. Augusto Estêves, filho do Coronel Afonsão Estêves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto — o homem — nessa noitinha de novena, num leilão de atrás da igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici.
Procissão entrou, reza acabou. E o leilão andou depressa e se extinguiu, sem graça, porque a gente direita foi saindo embora, quase toda de uma vez.
Mas o leiloeiro ficara na barraca, comendo amêndoas de cartucho e pigarreando de rouco, bloqueado por uma multidão encachaçada de fim de festa.
E, na primeira fila, apertadas contra o balcãozinho, bem iluminadas pelas candeias de meia-laranja, as duas mulheres-à-toa estavam achando em tudo um espírito enorme, porque eram só duas e pois muito disputadas, todo-o-mundo com elas querendo ficar.
Beleza não tinham: Angélica era preta e mais ou menos capenga, e só a outra servia. Mas, perto, encostado nela outra, um capiau de cara romântica subia todo no sem-jeito; eles estavam se gostando, e, por isso, aquele povo encapetado não tinha — pelo menos para o pobre namorado — nenhuma razão de existir. E a cada momento as coisas para ele pioravam, com o pessoal aos gritos:
Quem vai arrematar a Sariema? Anda, Tião! Bota a Sariema no leilão!...
Bota no leilão! Bota no leilão...
A das duas raparigas que era branca e que tinha pescoço fino e pernas finas, e passou a chamar-se, imediatamente, Sane ma — pareceu se assustar, O capiau apaixonado deixou fuchicar, de cansaço, o meio-riso que trazia pendurado. E o leiloeiro pedia que houvesse juízo; mas ninguém queria atender.
Dou cinco mil-réis!
Sariema! Sariema!
E, aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com os braços em tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião: — Cinquenta mil-réis!...
Ficou de mãos na cintura, sem dar rosto ao povo, mas pausando para os aplausos.
Nhô Augusto! Nhô Augusto!
E insistiu fala mais forte:
Cinquenta mil-réis, já disse! Dou-lhe uma! dou-lhe duas! Dou-lhe duas — dou-lhe três!
Mas, nisso, puxaram para trás a outra — a Angélica preta se rindo, senvergonha e dengosa — que se soverteu na montoeira, de braço em braço, de rolo em rolo, pegada, manuseada, beliscada e cacarejante:
Virgem Maria Puríssima! Úi, pessoal!
E só então o Tião leiloeiro achou coragem para se impor: — Respeito, gente, que o leilão é de santo!...
Bau-bau!
Me desprezo! Me desprezo desse herege!... Vão coçar suas costas em parede!... Coisa de igreja tem castigo, não é brinquedo... Deix’passar! ... Dá enxame, gente! Dá enxame!...
Alguns quiseram continuar vaia, mas o próprio Nhô Augusto abafou a arrelia: — Sino e santo não é pagode, povo! Vou no certo... Abre, abre, deixa o Tião passar!
Então, surpresos, deram caminho, e o capiau amoroso quis ir também: — Vamos embora, Tomázia, aproveitando a confusão... E sua voz baixava, humilde, porque para ele ela não era a Sariema. Pôs três dedos no seu braço, e bem que ela o quis acompanhar. Mas Nhô Augusto separou-os, com uma pranchada de mão: — Não vai, não!
E, atrás, deram apoio os quatro guarda-costas: — Tem areia! Tem areia! Não vai, não!
É do Nhô Augusto... Nhô Augusto leva a rapariga! — gritava o povo, por ser barato. E uma voz bem entoada cantou de lá, por cantar:

Mariquinha é como a chuva:
boa, p’ra quem quer bem!
Ela vem sempre de graça,
só não sei quando ela vem...

Aí o povaréu aclamou, com disciplina e cadência: — Nhô Augusto leva a Sariema! Nhô Augusto leva a Sariema!
O capiauzinho ficou mais amarelo. A Sariema começou a querer chorar. Mas Nhô Augusto, rompente, alargou no tal três pescoções:
Toma! Toma! E toma!... Está querendo?...
Ferveram faces.
Que foi? Que foi?...
Deix’eu ver!...
Não me esbarra, filho-da-mãe!
E a agitação partiu povos, porque a maioria tinha perdido a cena, apreciando, como estavam, uma falta-de-lugar, que se dera entre um velho — “Cai n’água, barbado!” — e o sacristão, no quadrante noroeste da massa. E também no setor sul estalara, pouco antes, um mal-entendido, de um sujeito com a correia desafivelada lept!... lept!... — , com um outro pedindo espaço, para poder fazer sarilho com o pau.
Que foi, hein?... Que foi?
Foi o capiauzinho apanhando, estapeado pelos quatro cacundeiros de Nhô Augusto, e empurrado para o denso do povo, que também queria estapear.
Viva Nhô Augusto!
Te apessoa para cá, do meu lado! — e Nhô Augusto deu o braço à rapariga, que parou de lacrimejar.
Vamos andando.
Passaram entre alas e aclamações dos outros, que, aí, como não havia mais mulheres, nem brigas, pegaram a debandar ou a cantar:

Ei, compadre, chegadinho, chegou...
Ei, compadre, chega mais um bocadinho!...”

Nhô Augusto apertava o braço da Sariema, como quem não tivesse tido prazo para utilizar no capiau todos os seus ímpetos:
E é, hein?... A senhora dona queria ficar com aquele, hein?!
Foi, mas agora eu gosto é de você.., O outro eu mal-e mal conheci...
Caminharam para casa. Mas para a casa do Beco do Sem Ceroula, onde só há três prédios — cada um deles com gramofone tocando, de cornetão à janela e onde gente séria entra mas não passa.
Nisso, porém, transpunham o adro, e Nhô Augusto parou, tirando o chapéu e fazendo o em-nome-do-padre, para saudar a porta da igreja. Mas o lugar estava bem alumiado, com lanterninhas e muita luz de azeite, pendentes dos arcos de bambu. E Nhô Augusto olhou a mulher.
Que é?!... Você tem perna de manuel-fonseca, uma fina e outra seca! E está que é só osso, peixe cozido sem tempero... Capim p’ra mim, com uma sombração dessas!... Vá-se embora, frango-d’água! Some daqui!
E, empurrando a rapariga, que abriu a chorar o choro mais sentido da sua vida, Nhô Augusto desceu a ladeira sozinho — uma ladeira que a gente tinha de descer quase correndo, por que era só cristal e pedra solta.
Lá em baixo, esbarrou com o camarada, que trazia recado de Dona Dionóra: que Nhô Augusto voltasse, ou ao menos desse um pulo até lá— à casa dele, de verdade, na Rua de Cima, — porque ainda havia muito arranjo a ultimar para a viagem, e ela — a mulher, a esposa — tinha uma ou duas coisas por perguntar...
Mas Nhô Augusto nem deixou o mensageiro acabar de acabar: — Desvira, Quim, e dá o recado pelo avesso: eu lá não vou! ... Você apronta os animais, para voltar amanhã com Siá Dionóra mais a menina, para o Morro Azul. Mas, em antes, você sobe por aqui, e vai avisar aos meus homens que eu hoje não preciso deles, não.
E o Quim Recadeiro correu, com o recado, enquanto Nhô Augusto ia indo em busca de qualquer luz em porta aberta, aonde houvesse assombros de homens, para entrar no meio ou desapartar.
Guimarães Rosa, in Sagarana

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