Enquanto
atravessavam a ladeira de São Miguel, a caminho do castelo, iam
sendo alvo de manifestações variadas. No Flor de São Miguel,
o alemão Hansen lhes ofereceu uma rodada de pinga. Mais adiante, o
francês Verger distribuiu amuletos africanos às mulheres. Não
podia ficar com eles porque tinha ainda uma obrigação de santo a
cumprir naquela noite. As portas dos castelos voltavam a abrir-se, as
mulheres surgiam nas janelas e nas calçadas. Por onde passavam,
ouviam-se gritos chamando Quincas, vivando-lhe o nome. Ele agradecia
com a cabeça, como um rei de volta a seu reino. Em casa de Quitéria,
tudo era luto e tristeza. Em seu quarto de dormir, sobre a cômoda,
ao lado de uma estampa de Senhor do Bonfim e da figura em barro do
Caboclo Aroeira, seu guia, resplandecia um retrato de Quincas
recortado de um jornal – de uma série de reportagens de Giovanni
Guimarães sobre os subterrâneos da vida baiana –,
entre duas velas acesas, com uma rosa vermelha embaixo. Já Doralice,
companheira de casa, abrira uma garrafa e servia em cálices azuis.
Quitéria apagou as velas, Quincas reclinou-se na cama, os demais
saíram para a sala de jantar. Não tardou e Quitéria estava com
eles:
– O
desgraçado dormiu...
– Tá
num porre mãe... – esclareceu Pé-de-Vento.
– Deixa
ele dormir um pouquinho – aconselhou Negro Pastinha. – Hoje ele
tá
impossível.
Também, tem direito...
Mas
já estavam atrasados para a peixada de Mestre Manuel e o jeito, daí
a pouco, foi despertar Quincas. Quitéria, a negra Carmela e a gorda
Margarida iriam com eles. Doralice não aceitou o convite, acabara de
receber um recado do doutor Carmino, viria naquela noite. E
o
doutor Carmino, eles compreendiam, pagava por mês, era uma garantia.
Não podia ofendêlo. Desceram a ladeira, agora iam apressados,
Quincas quase corria, tropeçava nas pedras, arrastando Quitéria e
Negro Pastinha, com os quais se abraçara. Esperavam chegar ainda a
tempo de encontrar o saveiro na rampa.
Pararam,
no entanto, no meio do caminho, no bar de Cazuza, um velho amigo. Bar
mal freqüentado aquele, não havia noite em que não saísse
alteração. Uma turma de fumadores de maconha ancorava ali todos os
dias. Cazuza, porém, era gentil, fiava uns tragos, por vezes mesmo
uma garrafa. E, como eles não podiam chegar ao saveiro com as mãos
abanando, resolveram passar a conversa em Cazuza, obter uns três
litros de cana. Enquanto o cabo Martim, diplomata irresistível,
cochichava no balcão com o proprietário estupefato ao ver Quincas
Berro Dágua no melhor de sua forma, os demais sentaram-se para uma
abrideira de apetite por conta da casa, em homenagem ao
aniversariante. O bar estava cheio: uma rapaziada sorumbática,
marinheiros alegres, mulheres na última lona, choferes de caminhão
de viagem marcada para Feira de Santana naquela noite.
A
peleja foi inesperada e bela. Parece realmente verdade ter sido
Quincas o responsável. Sentara-se ele com a cabeça reclinada no
peito de Quitéria, as pernas estiradas. Segundo consta, um dos
rapazolas, ao passar, tropeçou nas pernas de Quincas, quase caiu,
reclamou com maus modos. Negro Pastinha não gostou do jeito do
fumador de maconha. Naquela noite, Quincas tinha todos os direitos,
inclusive o de estirar as pernas como bem quisesse e entendesse. E o
disse. Não tendo o rapaz reagido, nada aconteceu então. Minutos
depois, porém, um outro, do mesmo grupo de maconheiros, quis também
passar. Solicitou a Quincas afastar as pernas. Quincas fez que não
ouviu. Empurrou-o então o magricela, violento, dizendo nomes.
Deu-lhe Quincas uma cabeçada, a inana começou. Negro Pastinha
segurou o rapaz, como era seu costume, e o atirou em cima de outra
mesa. Os companheiros da maconha viraram feras, avançaram. Daí em
diante, impossível contar. Via-se apenas, em cima de uma cadeira,
Quitéria, a formosa, de garrafa em punho, rodando o braço. Cabo
Martim assumiu o comando.
Quando
a refrega terminou com a total vitória dos amigos de Quincas, a quem
se aliaram os choferes, Pé-de-Vento estava com um olho negro, uma
aba do fraque de Curió fora rasgada, prejuízo importante. E Quincas
encontrava-se estendido no chão, levara uns socos violentos, batera
com a cabeça numa laje do passeio. Os maconheiros tinham fugido.
Quitéria debruçava-se sobre Quincas, tentando reanimá-lo. Cazuza
considerava filosoficamente o bar de pernas para o ar, mesas viradas,
copos quebrados. Estava acostumado, a notícia aumentaria a fama e os
fregueses da casa. Ele próprio não desgostava de apreciar uma
briga. Quincas reanimou-se mesmo foi com um bom trago. Continuava a
beber daquela maneira esquisita: cuspindo parte da cachaça, num
esperdício. Não fosse dia de seu aniversário e cabo Martim
chamar-lhe-ia a atenção delicadamente. Dirigiram-se ao cais. Mestre
Manuel já não os esperava àquela hora. Estava no fim da peixada,
comida ali mesmo na rampa, não iria sair barra fora quando apenas
marítimos rodeavam o caldeirão de barro. No fundo, ele não chegara
em nenhum momento a acreditar na notícia da morte de Quincas e,
assim, não se surpreendeu ao vê-lo de braço com Quitéria. O velho
marinheiro não podia falecer em terra, num leito qualquer.
– Ainda
tem arraia pra todo mundo...
Suspenderam
as velas do saveiro, puxaram a grande pedra que servia de âncora. A
lua fizera do mar um caminho de prata, ao fundo recortava-se na
montanha a cidade negra da Bahia. O saveiro foi-se afastando devagar.
A voz de Maria Clara elevou-se num canto marinheiro:
“No
fundo do mar te achei
toda
vestida de conchas...”
Rodeavam
o caldeirão fumegante. Os pratos de barro se enchiam. Arraia mais
perfumada, moqueca de dendê e pimenta. A garrafa de cachaça
circulava. Cabo Martim não perdia jamais a perspectiva e a clara
visão das necessidades prementes. Mesmo comandando a briga,
conseguira surrupiar umas garrafas, escondê-las sob os vestidos das
mulheres. Apenas Quincas e Quitéria não comiam: na popa do saveiro,
deitados, ouviam a canção de Maria Clara, a formosa do Olho
Arregalado dizia palavras de amor ao velho marinheiro.
– Por
que pregar susto na gente, Berrito desgraçado? Tu bem sabe que tenho
o coração fraco, o médico recomendou que eu não me aborrecesse.
Cada idéia tu tem, como posso viver sem tu, homem com parte com o
tinhoso? Tou acostumada com tu, com as coisas malucas que tu diz, tua
velhice sabida, teu jeito tão sem jeito, teu gosto de bondade. Por
que tu me fez isso hoje? – e tomava da cabeça ferida na peleja,
beijava-lhe os olhos de malícia. Quincas não respondia: aspirava o
ar marítimo, uma de suas mãos tocava a água, abrindo um risco nas
ondas. Tudo foi tranquilidade no início da festa: a voz de Maria
Clara, a beleza da peixada, a brisa virando vento, a lua no céu, o
murmurar de Quitéria. Mas inesperadas nuvens vieram do Sul,
engoliram a lua cheia. As estrelas começaram a apagar-se e o vento a
fazer-se frio e perigoso. Mestre Manuel avisou:
– Vai
ser noite de temporal, é melhor voltar.
Pensava
ele trazer o saveiro para o cais antes que caísse a tempestade. Era,
porém, amável a cachaça, gostosa a conversa, havia ainda muita
arraia no caldeirão, boiando no amarelo do azeite-de-dendê, e a voz
de Maria Clara dava uma dolência, um desejo de demorar nas águas.
Ao demais, como interromper o idílio de Quincas e Quitéria naquela
noite de festa?
Foi
assim que o temporal, o vento uivando, as águas encrespadas, os
alcançou em viagem. As luzes da Bahia brilhavam na distância, um
raio rasgou a escuridão. A chuva começou a cair. Pitando seu
cachimbo, Mestre Manuel ia ao leme. Ninguém sabe como Quincas se pôs
de pé, encostado à vela menor. Quitéria não tirava os olhos
apaixonados da figura do velho marinheiro, sorridente para as ondas a
lavar o saveiro, para os raios a iluminar o negrume. Mulheres e
homens se seguravam às cordas, agarravam-se às bordas do saveiro, o
vento zunia, a pequena embarcação ameaçava soçobrar a cada
momento. Silenciara a voz de Maria Clara, ela estava junto do seu
homem na barra do leme.
Pedaços
de mar lavavam o barco, o vento tentava romper as velas. Só a luz do
cachimbo de Mestre Manuel persistia, e a figura de Quincas, de pé,
cercado pela tempestade, impassível e majestoso, o velho marinheiro.
Aproximava-se o saveiro lenta e dificilmente das águas mansas do
quebra-mar. Mais um pouco e a festa recomeçaria. Foi quando cinco
raios sucederam-se no céu, a trovoada reboou num barulho de fim do
mundo, uma onda sem tamanho levantou o saveiro. Gritos escaparam das
mulheres e dos homens, a gorda Margô exclamou:
–
Valha-me Nossa Senhora!
No
meio do ruído, do mar em fúria, do saveiro em perigo, à luz dos
raios, viram Quincas atirar-se e ouviram sua frase derradeira.
Penetrava
o saveiro nas águas calmas do quebra-mar, mas Quincas ficara na
tempestade, envolto num lençol de ondas e espuma, por sua própria
vontade.
Não
houve jeito da agência funerária receber o esquife de volta, nem
pela metade do preço. Tiveram de pagar, mas Vanda aproveitou as
velas que sobraram. O caixão está até hoje no armazém de Eduardo,
esperançoso ainda de vendê-lo a um morto de segunda mão. Quanto à
frase derradeira há versões variadas. Mas quem poderia ouvir
direito no meio daquele temporal? Segundo um trovador do Mercado,
passou-se assim:
“No
meio da confusão
Ouviu-se
Quincas dizer:
"–Me
enterro como entender
Na
hora que resolver.
Podem
guardar seu caixão
Pra
melhor ocasião.
Não
vou deixar me prender
Em
cova rasa no chão."
E
foi impossível saber
O
resto de sua oração.”
FIM
Rio,
abril de 1959
Jorge Amado,
In A morte e a morte de Quincas
Berro D’água
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