Fotograma do filme Vidas Secas
Fabiano,
Sinha Vitória e os meninos iam à festa de Natal na cidade. Eram
três horas, fazia grande calor, redemoinhos espalhavam por cima das
árvores amarelas nuvens de poeira e folhas secas.
Tinham
fechado a casa, atravessado o pátio, descido a ladeira, e pezunhavam
nos seixos como bois doentes dos cascos. Fabiano, apertado na roupa
de brim branco feita por Sinha Terta, com chapéu de beata,
colarinho, gravata, botinas de vaqueta e elástico, procurava erguer
o espinhaço, o que ordinariamente não fazia. Sinha
Vitória,enfronhada no vestido vermelho de ramagens, equilibrava-se
mal nos sapatos de salto enorme. Teimava em calçar-se como as moças
da rua - e dava topadas no caminho. Os meninos estreavam calça e
paletó. Em casa sempre usavam camisinhas de riscado ou andavam nus.
Mas Fabiano tinha comprado dez varas de pano branco na loja e
incumbira Sinha Terta de arranjar farpelas para ele e para os filhos.
Sinha Terta achara pouca a fazenda, e Fabiano se mostrara
desentendido, certo de que a velha pretendia furtar-lhe os retalhos.
Em consequência as roupas tinham saído curtas, estreitas e cheias
de emendas.
Fabiano
tentava não perceber essas desvantagens. Marchava direito, a barriga
para fora, as costas aprumadas, olhando a serra distante. De
ordinário olhava o chão, evitando as pedras, os tocos, os buracos e
as cobras. A posição forçada cansou-o. E ao pisar a areia do rio,
notou que assim não poderia vencer as três léguas que o separavam
da cidade. Descalçou-se, meteu as meias no bolso, tirou o paletó, a
gravata e o colarinho, roncou aliviado. Sinha Vitória decidiu
imitá-lo: arrancou os sapatos e as meias, que amarrou no lenço. Os
meninos puseram as chinelinhas debaixo do braço e sentiram-se à
vontade.
A
cachorra Baleia, que vinha atrás, incorporou-se ao grupo. Se ela
tivesse chegado antes provavelmente Fabiano a teria enxotado. E
Baleia passaria a festa junto às cabras que sujavam o copiar. Mas
com a gravata e o colarinho machucados no bolso, o paletó no ombro e
as botinas enfiadas num pau, o vaqueiro achou-se perto dela e
acolheu-a.
Retomou
a posição natural: andou cambaio, a cabeça inclinada. Sinha
Vitória, os dois meninos e Baleia acompanharam-no. A tarde foi
comida facilmente e ao cair da noite estavam na beira do riacho, à
entrada da rua.
Aí
Fabiano parou, sentou-se, lavou os pés duros, procurando retirar das
gretas fundas o barro que lá havia. Sem se enxugar, tentou calçar-se
- e foi uma dificuldade: os calcanhares das meias de algodão
formaram bolos nos peitos dos pés e as botinas de vaqueta resistiram
como virgens. Sinha Vitória levantou a saia, sentou-se no chão e
limpou-se também. Os dois meninos entraram no riacho, esfregaram os
pés, saíram, calçaram as chinelinhas e ficaram espiando os
movimentos dos pais. Sinha Vitória aprontava-se e erguia-se, mas
Fabiano soprava arreliado. Tinha vencido a obstinação de uma
daquelas amaldiçoadas botinas; a outra emperrava, e ele, com os
dedos nas alças, fazia esforços inúteis. Sinha Vitória dava
palpites que irritavam o marido. Não havia meio de introduzir o
diabo do calcanhar no tacão. A um arranco mais forte, a alça de
trás rebentou-se, e o vaqueiro meteu as mãos pela borracha,
energicamente. Nada conseguindo, levantou-se resolvido a entrar na
rua assim mesmo, coxeando, uma perna mais comprida que a outra. Com
raiva excessiva, a que se misturava alguma esperança, deu uma patada
violenta no chão. A carne comprimiu-se, os ossos estalaram, a meia
molhada rasgou-se e o pé amarrotado se encaixou entre as paredes de
vaqueta. Fabiano soltou um suspiro largo de satisfação e dor. Em
seguida tentou prender o colarinho duro ao pescoço, mas os dedos
trêmulos não realizaram a tarefa. Sinha Vitória auxiliou-o: o
botão entrou na casa estreita e a gravata amarrou-se. As mãos
sujas, suadas, deixaram no colarinho manchas escuras.
-
Está certo, grunhiu Fabiano.
Atravessaram
a pinguela e alcançaram a vila. Sinha Vitória caminhava aos tombos,
por causa dos saltos dos sapatos, e conservava o guarda-chuva
suspenso, com o castão para baixo e a biqueira para cima, enrolada
no lenço. Impossível dizer porque Sinha Vitória levava o
guarda-chuva com biqueira para cima e o castão para baixo. Ela
própria não saberia explicar-se, mas sempre vira as outras matutas
procederem assim e adotava o costume.
Fabiano
marchava teso. Os dois meninos espiavam os lampiões e adivinhavam
casos extraordinários. Não sentiam curiosidade, sentiam medo, e por
isso pisavam devagar, receando chamar a atenção das pessoas.
Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda, mundos
maravilhosos na serra azulada. Aquilo, porém, era esquisito. Como
podia haver tantas casas e tanta gente? Com certeza os, homens iriam
brigar. Seria que o povo ali era brabo e não consentia que eles
andassem entre as barracas? Estavam acostumados a aguentar cascudos e
puxões de orelhas. Talvez as criaturas desconhecidas não se
comportassem como Sinha Vitória, mas os pequenos retraíam-se,
encostavam-se às paredes, meio encandeados, os ouvidos cheios de
rumores estranhos.
Chegaram
à igreja, entraram. Baleia ficou passeando na calçada, olhando a
rua, inquieta. Na opinião dela, tudo devia estar no escuro, porque
era noite, e a gente que andava no quadro precisava deitar-se.
Levantou o focinho, sentiu um cheiro que lhe deu vontade de tossir.
Gritavam demais ali perto e havia luzes em abundância, mas o que a
incomodava era aquele cheiro de fumaça.
Os
meninos também se espantavam. No mundo, subitamente alargado, viam
Fabiano e Sinha Vitória muito reduzidos, menores que as figuras dos
altares. Não conheciam altares, mas presumiam que aqueles objetos
deviam ser preciosos. As luzes e os cantos extasiavam-nos. De luz
havia, na fazenda, o fogo entre as pedras da cozinha e o candeeiro de
querosene pendurado pela asa numa vara que saía da taipa; de canto,
o bem dito de Sinha Vitória e o aboio de Fabiano. O aboio era
triste, uma cantiga monótona e sem palavras que entorpecia o gado.
Fabiano estava silencioso, olhando as imagens e as velas acesas,
constrangido na roupa nova, o pescoço esticado, pisando, em brasas.
A multidão apertava-o mais que a roupa, embaraçava-o. De perneiras,
gibão e guarda-peito, andava metido numa caixa, como tatu, mas
saltava no lombo de um bicho e voava na catinga. Agora não podia
virar-se: mãos e braços roçavam-lhe o corpo. Lembrou-se da surra
que levara e da noite passada na cadeia. A sensação que
experimentava não diferia muito da que tinha tido ao ser preso. Era
como se as mãos e os braços da multidão fossem agarrá-lo,
subjugá-lo, espremê-lo num canto de parede. Olhou as caras em
redor. Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam,
mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em
questões e acabar mal a noite. Soprava e esforçava-se inutilmente
por abanar-se com o chapéu. Difícil mover-se, estava amarrado.
Lentamente conseguiu abrir caminho no povaréu, esgueirou-se até
junto da pia de água benta, onde se deteve, receoso de perder de
vista a mulher e os filhos. Ergueu-se nas pontas dos pés, mas isto
lhe arrancou um grunhido: os calcanhares esfolados começavam a
afligi-lo. Distinguiu o cocó de Sinha Vitória, que se escondia
atrás de uma coluna. Provavelmente os meninos estavam com ela. A
igreja cada vez mais se enchia. Para avistar a cabeça da mulher,
Fabiano precisava estirar-se, voltar o rosto. E o colarinho
furava-lhe o pescoço. As botinas e o colarinho eram indispensáveis.
Não poderia assistir à novena calçado em alpercatas, a camisa de
algodão aberta, mostrando o peito cabeludo. Seria desrespeito. Como
tinha religião, entrava na igreja uma vez por ano.
E
sempre vira, desde que se entendera, roupas de festa assim: calça e
paletó engomados, batinas de elástico, chapéu de baeta, colarinho
e gravata. Não se arriscaria a prejudicar a tradição, embora
sofresse com ela. Supunha cumprir um dever, tentava aprumar-se. Mas a
disposição esmorecia: o espinhaço vergava, naturalmente, os braços
mexiam-se desengonçados.
Comparando-se
aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso
desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e
evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer
coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O
patrão realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Da
última vez que se tinham encontrado houvera uma confusão de
números, e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o
escritório do branco, certo de que fora enganado. Todos lhe davam
prejuízo. Os caixeiros, os comerciantes e o proprietário
tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio com ele riam
vendo-o passar nas ruas, tropeçando. Por isso Fabiano se desviava
daqueles viventes. Sabia que a roupa nova cortada e cosida por Sinha
Terta, o colarinho, a gravata, as botinas e o chapéu de baeta o
tornavam ridículo, mas não queria pensar nisto.
-
Preguiçosos, ladrões, faladores, mofinos.
Graciliano
Ramos, in Vidas Secas
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