Ponto
de reunião e fuxicos era a sala de jantar, que, por duas portas,
olhava o alpendre e a cozinha. Como falavam muito alto, as pessoas se
entendiam facilmente de uma peça para outra. Nos feixes de lenha
arrumados junto ao fogão, na prensa de farinha, nos bancos duros que
ladeavam a mesa, a gente se sentava e ouvia as emboanças do criado,
um caboclo besta e palrador. Rosenda lavadeira cachimbava e engomava
roupa numa tábua. O moleque José e a moleca Maria esgueiravam-se da
sombra, perdiam a condição e a cor, não se distinguiam quase dos
meninos de Teotoninho Sabiá.
Vivíamos
todos em grande mistura — e a sala de visitas era inútil, com as
cadeiras pretas desocupadas, uma litografia de S. João Batista e uma
do inferno, o pequeno espelho de cristal que Amando, afilhado de meu
pai, trouxera do Rio ao deixar o exército no posto de sargento. Esse
espelho caía da parede e nunca se partiu, rivalizava com o copo azul, lembrança do casamento de meu avô, e o paliteiro
que representava dois galos e uma raposa. Há meia dúzia de anos o
paliteiro ainda existia, mau um dos galos se tinha ausentado.
As
cadeiras pretas não se espanavam. Certo dia o tenente de polícia
desconfiou delas, tirou o lenço e esfregou uma. Horrível. Minha mãe
se enfureceu, tencionou besuntar os móveis com azeite de peixe,
arrumar a farda não-me-toque daquele safadinho. Desistiu da vingança
— e a sala se conservou deserta, abrindo-se raramente para receber
D. Conceição, D. Clara, D. Águeda, outras senhoras que se
enfastiavam no silêncio, espiando o santo, os demônios chifrudos, o
espelho, a sola do marquesão empoeirado.
Afinal
aquilo se transformou em paiol. Retirou-se a mobília, transportou-se
para ali o milho que no depósito era um viveiro de borboletas.
Ficara o grão exposto, aguardando a carestia por causa da seca, e a
lagarta dera nele.
Desvalorizava-se
agora. Indispensável tratá-lo com veneno, matar os bichos.
Uma
festa para as crianças. Eu e minhas irmãs revolvemos a tulha cor de
ouro, espalhando o arsênico. Dispensou-se o trabalhador — e nós
nos encarregamos gostosamente da tarefa. Abandonamos a prensa de
farinha, o armazém atravancado de ferragens, o quintal nu, donde se
ouvia o descaroçador barulhento do Cavalo-Morto.
Na
sala, mudada em celeiro, o nosso ambiente se alargava de chofre,
adquiríamos liberdade. As sementes se derramavam no corredor, iam-se
acumulando, formavam uma ladeira, que subíamos até alcançar as
janelas. Daí dominávamos a rua, víamos os transeuntes mais baixos
que nós. Seu Acrísio errava o caminho, tropeçava, batia nas
paredes e rosnava: “Diabo! diabo! diabo!” Alguns passos à
direita, Seu Chico Brabo maltratava João. No solo movediço
achávamos firmeza. A nossa brincadeira representava utilidade
— e
não viriam desmancha-prazeres aquietar-nos, impor-nos disciplina.
Contudo
uma sombra às vezes nos toldava a alegria: a recordarão do Vigário.
Na cozinha e na sala de jantar pintavam-no terrível, uma espécie de
lobisomem criado para forçar-nos à obediência. Citavam-se os
despropósitos dele na igreja.
Isto
não nos interessava. Tínhamos, porém, razão para temer aquele
homem tenebroso por fora e por dentro. Não ria. O olho postiço,
imóvel num círculo negro, dava-lhe aspecto sinistro.
Além
disso Padre João Inácio habituara-se a cuidar de variolosos,
viventes que infundiam pavor a toda a vila. Se aparecia notícia
deles, as portas se fechavam, o comércio enfraquecia, nas pontas das
ruas queimavam excremento de boi e creolina em cacos de telha. Uma
noite levavam os infelizes, enrolados, paia os barracões de palha
feitos nas brenhas, onde a carne doente apodrecia quase ao abandono,
sobre folhas de bananeiras. Alguns enfermeiros imunizados
furavam-lhes as pústulas com espinhos de mandacaru, lavavam-nas com
aguardente e cânfora. Havia grande mortandade, e as marcas dos
sobreviventes eram horrorosas. Os curandeiros dessa praga inspiravam
tanto receio como as vítimas dela. Cercava-os uma faixa de
isolamento. Admiração e repugnância.
Pois
numa epidemia das mais violentas Padre João Inácio e Capitão
Badega isentos de preservativos, se haviam estabelecido nos
barracões. Gente medrosa sucumbira. Os dois tinham saído ilesos e,
em consequência, virado comendadores. Distinção balda. O Vigário
nunca chegou a Cônego.
E
Capitão Badega permaneceu capitão, sumido na fazenda, insensível a
honrarias, lendo César Cantu, governando vários filhos naturais e
um lote de cabrochas.
Depois
da façanha, Padre João Inácio arranjara tubos de linfa e começara
a furar os braços da humanidade na vila e circunvizinhança. Os
sertanejos não queriam meter a desgraça no corpo, adoecer por
gosto; Se um médico tentasse a inoculação, haveria distúrbios.
Mas aquela autoridade franzina usava despotismo, não descia a
explicações. Insultava a canalha, raça de cachorro com porco.
Mandava porque tinha poderes: era Albuquerque e sacerdote. E os
paroquianos se deixavam contaminar, covardes, lamentando que S.
Rev.ma não se dedicasse inteiramente às cerimônias do culto. Não
se dedicava. Dirigia um partido político — e o culto lhe merecia
fraca atenção.
Fora
condiscípulo do Padre Cícero. Falava no taumaturgo, que principiava
a notabilizar-se: apagado, sofrível, por não ser Albuquerque.
Padre
João Inácio era pobre e tinha credores, que dominava. Conseguia,
cheio de necessidades, exibir independência, injuriar, gritar.
Fomos
vacinados na loja, graúdos e miúdos. Na surpresa, ignorando a
tendência má do homem, não senti dor nem medo. Mas as feridas que
vieram, resguardos, febre, quarenta dias sem toicinho, me pareceram
obra do reverendo.
Graciliano
Ramos, in Infância
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