O
maior triunfo do homem é quando se convence de que o ridículo é
uma coisa sua que existe só para os outros, e, mesmo, sempre que
outros queiram. Ele então deixa de importar-se com o ridículo, que,
como não está em si, ele não pode matar.
Três
coisas tem o homem superior que ensinar-se a esquecer para que possa
gozar no perfeito silêncio a sua superioridade - o ridículo, o
trabalho e a dedicação.
Como
não se dedica a ninguém, também nada exige da dedicação alheia.
Sóbrio, casto, frugal, tocando o menos possível na vida, tanto para
não se incomodar como para não aproximar as coisas de mais, a ponto
de destruir nelas a capacidade de serem sonhadas, ele isola-se por
conveniência do orgulho e da desilusão. Aprende a sentir tudo sem o
sentir diretamente; porque sentir diretamente é submeter-se -
submeter-se à ação da coisa sentida.
Vive
nas dores e nas alegrias alheias, Whitman olímpico, Proteu da
compreensão, sem partilhar de vivê-las realmente. Pode, a seu
talante, embarcar ou ficar nas partidas de navios e pode ficar e
embarcar ao mesmo tempo, porque não embarca nem fica. Esteve com
todos em todas as sensações de todas as horas da sua vida.
Assistiu, olhando pelos olhos e pelos corações dos protagonistas, a
todas as tragédias da terra. Com os que renunciaram renunciou. Caiu
em todas as batalhas, ficando vencedor de elas.
Venceu a sua alegria e a sua dor vencendo toda a alegria e toda a dor do mundo.
Venceu a sua alegria e a sua dor vencendo toda a alegria e toda a dor do mundo.
Ele
lembra-se da sua própria voz ter gritado, de entre o povo judeu que
se aglomerara: “Nós queremos antes Barrabás”. E no momento em
que pensou como o tinha sido, o nome de Barrabás lembrava-lhe já
que Barrabás era ele, e Cristo também, que o povo não pedira.
Quando voltou a querer lembrar-se que homem do povo havia sido, viu
que tinha sido todos eles. Se olhava ligeiramente para cima sentia em
sonho na sua fronte de mulher os cabelos negros de Maria. Sentia
seios. Como eles desviaram a ideia para o instinto sexual, ele chorou
de repente e sabia que era a Madalena. Estendia as mãos mas
lembrou-se de quando Pilatos as lavara da responsabilidade, e o seu
vulto aprumava-se, governador romano, na sonhada toga que lhe roçava
de leve a sensação ideal da própria pele.
Cerrava
os olhos, os próprios olhos do sonho, com o cansaço múltiplo
daquilo tudo, e num último reflexo, antes da apatia, os estandartes
do fim daquilo tudo, passam, com águias no cimo, num crepúsculo com
montes verdes ao fundo.
O
cansaço de tanta sensação dispersa trazia-lhe uma depressão; e a
depressão trazia-lhe os sentimentos depressivos - e entre eles, no
limite do cansaço, o da piedade mole e chorosa pelos outros - canto
de ama, cantando à noite, quando o pobre que não tinha ninguém
encontra Nossa Senhora na estrada vestida de pastora, que o leva pela
mão para o céu.
A
infância lembrada abriu a porta a Cristo que entra pela sua sensação
de todas as lágrimas a chorar.
Fernando
Pessoa, in
Inéditos
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