Chaminé
que construísse em minha casa não seria para sair o fumo, mas para
entrar o céu.
(Dito
do avô Celestiano)
O
dia começa sempre de mentira. Porque o sol só finge nascer. Aquela
manhã acordou com vontade de esquentar e eu me decidi passear pela
praia. Foi quando encontrei Luarmina mergulhada numa poça de água.
Estava vestida e as roupas colavam-se no corpo. Aproximei e lhe
perguntei a razão daqueles banhos. Ela respondeu que queria aquecer
as pernas.
— A
água está quentinha?
— Não
recebo quentura da água. Quem me aquece são caracóis.
E
explicou: havia uns certos caracóis que lhe lambiam as pernas,
pastando nessas gorduras dela. Os bichos desqualificavam viscosas
salivas sobre a vizinha e eu só pensava: mal empregadas as minhas
próprias babas, com o devido respeito. E salvo seja.
— Dá
licença eu entrar?
—
Entrar onde?
— Nessa
água onde a senhora está ser banhada.
Entrei,
fui-me achegando perto da vizinha. Me entornei na água e fechei os
olhos igual como ela. Minhas mãos fingiram ser caracóis, lesmas
babadoiras lavrando nas coxas de Luarmina. Para meu espanto, a mulata
não me repeliu. Meus dedos prosseguiram, cumprindo seu dever,
pescando entre roupa e corpo. Espreitei pela esquina dos olhos: a
gorda Luarmina estava flutuando, embevencida, parecia um navio
repousando em desenho de criança.
De
repente, porém, ela soltou um grito. Emendei minha malandrice, mãos
atrás das costas.
—
Susto, Dona! O que foi?
Luarmina
apontou qualquer coisa sobre as águas. Eram peixes mortos boiando.
— Veja,
Zeca, são peixes sem olhos!
Um
arrepio me atravessou. Aquilo era um sinal. Alguém, da outra margem
do mundo, me estava vigiando. Mania dos mortos é teimarem em ser
humanos. E ali, entre mim e Luarmina, se vertia a mensagem dos
divinos. A mulata estava mais aterrorizada que eu.
— O
que é isso, Zeca?
— É
melhor sairmos da água. Venha, eu lhe ajudo.
Luarmina
tremia. Para espantar seu medo falei sem parar. Os peixes sabe o que
são? Como apareceram? Então, sente e sossegue. Isso, assim. Lhe vou
contar a versão de meu avô Celestiano. No antigamente não havia
bicho dentro do mar. Só na terra e no ar. Muitos pássaros havia,
vogando apenas sobre os continentes. Os deuses se contentavam de
ver-lhes voar sobre as florestas, subir acima das montanhosas
alturas. Uma vez, um pássaro se atreveu a pairar sobre as águas. E
ele surpreendeu, no reflexo, a beleza do seu próprio voo. Regressou
e contou aos outros:
— Já
sei por que nos proíbem voar sobre o oceano.
E
foram, aos milhares, bandos ansiosos por verem a sua imagem. Nunca,
sobre o mar, se haviam formado tais nuvens: feitas de plumas, ágeis
de suster peso. Foi então que estalou a tempestade, castigo dos
divinos deuses. Os relâmpagos rasgavam as aves, como facas
luminosas. Milhares de asas tombaram nas ondas e foram ganhando
embalo das correntes, como se continuassem voagens em líquidas
vagas. Assim, da asa nasceu a onda, da pluma nasceu a espuma.
— Da
maneira como estou, Zeca, nem me apetece ouvir nenhumas histórias.
Luarmina
não queria distração. O braço da angústia puxava-a para o fundo.
Melhor seria se fosse ela a falar:
— E
você, Luarmina, lembra da sua família?
Mas
ela não respondeu. Seu passado era como o futuro em nossas línguas:
começava apenas quando acabava, como lagarto que fosse comido pela
própria cauda. O resto se dissolvia em carimbos de tristeza.
—
Enquanto tive dedo dedilhei panos, vesti
gente.
Mas
esse serviço de confeitar vestes não lhe enchia a vida. Ela queria
ser outra coisa, queria crescer de si mais gente, ter filhos,
nascer-se em outras vidas. Mas sem essa dádiva, entrar em sua casa,
tão sem outros, não lhe dava vontade. Essa a razão por que vivia
mais em varanda que dentro das paredes.
— É
por causa disso que gosto de ouvir histórias de família. Vá, me
conte mais sobre sua casa, sua família.
— Não
peça isso, Luarmina.
— Sabe
uma coisa, Zeca: esta noite, toda luarada, acho que vou tomar banho
fora, no quintal.
— Nua?
Quer dizer, despida?
— Quem
sabe, Zeca?
— E
a senhora me deixa espreitar?
— Se
contar, eu deixo.
Mia
Couto, in Mar me quer
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