terça-feira, 31 de janeiro de 2017

A virtude, os maus e os bons

A virtude é mais perseguida pelos maus do que amada pelos bons.”
Miguel de Cervantes

O maior triunfo do homem

O maior triunfo do homem é quando se convence de que o ridículo é uma coisa sua que existe só para os outros, e, mesmo, sempre que outros queiram. Ele então deixa de importar-se com o ridículo, que, como não está em si, ele não pode matar.
Três coisas tem o homem superior que ensinar-se a esquecer para que possa gozar no perfeito silêncio a sua superioridade - o ridículo, o trabalho e a dedicação.
Como não se dedica a ninguém, também nada exige da dedicação alheia. Sóbrio, casto, frugal, tocando o menos possível na vida, tanto para não se incomodar como para não aproximar as coisas de mais, a ponto de destruir nelas a capacidade de serem sonhadas, ele isola-se por conveniência do orgulho e da desilusão. Aprende a sentir tudo sem o sentir diretamente; porque sentir diretamente é submeter-se - submeter-se à ação da coisa sentida.
Vive nas dores e nas alegrias alheias, Whitman olímpico, Proteu da compreensão, sem partilhar de vivê-las realmente. Pode, a seu talante, embarcar ou ficar nas partidas de navios e pode ficar e embarcar ao mesmo tempo, porque não embarca nem fica. Esteve com todos em todas as sensações de todas as horas da sua vida. Assistiu, olhando pelos olhos e pelos corações dos protagonistas, a todas as tragédias da terra. Com os que renunciaram renunciou. Caiu em todas as batalhas, ficando vencedor de elas.
Venceu a sua alegria e a sua dor vencendo toda a alegria e toda a dor do mundo.
Ele lembra-se da sua própria voz ter gritado, de entre o povo judeu que se aglomerara: “Nós queremos antes Barrabás”. E no momento em que pensou como o tinha sido, o nome de Barrabás lembrava-lhe já que Barrabás era ele, e Cristo também, que o povo não pedira. Quando voltou a querer lembrar-se que homem do povo havia sido, viu que tinha sido todos eles. Se olhava ligeiramente para cima sentia em sonho na sua fronte de mulher os cabelos negros de Maria. Sentia seios. Como eles desviaram a ideia para o instinto sexual, ele chorou de repente e sabia que era a Madalena. Estendia as mãos mas lembrou-se de quando Pilatos as lavara da responsabilidade, e o seu vulto aprumava-se, governador romano, na sonhada toga que lhe roçava de leve a sensação ideal da própria pele.
Cerrava os olhos, os próprios olhos do sonho, com o cansaço múltiplo daquilo tudo, e num último reflexo, antes da apatia, os estandartes do fim daquilo tudo, passam, com águias no cimo, num crepúsculo com montes verdes ao fundo.
O cansaço de tanta sensação dispersa trazia-lhe uma depressão; e a depressão trazia-lhe os sentimentos depressivos - e entre eles, no limite do cansaço, o da piedade mole e chorosa pelos outros - canto de ama, cantando à noite, quando o pobre que não tinha ninguém encontra Nossa Senhora na estrada vestida de pastora, que o leva pela mão para o céu.
A infância lembrada abriu a porta a Cristo que entra pela sua sensação de todas as lágrimas a chorar.
Fernando Pessoa, in Inéditos

Vinho

Os homens são como os vinhos: a idade azeda os maus e apura os bons.”
Cícero

Vida é busca

A vida é uma busca — uma busca constante, uma busca desesperada, uma busca sem esperança, uma busca de algo que não se sabe o que é. Há um forte impulso para procurar, mas não se sabe o que se procura. E há um certo estado de espírito em que nada daquilo que consegue lhe dará qualquer satisfação. A frustração parece ser o destino da humanidade, porque tudo aquilo que se obtém perde o sentido no momento exato em que se consegue. Começa-se novamente a procurar.
A busca continua, quer se consiga alguma coisa ou não. Parece ser irrelevante o que se tem e o que não se tem, pois a busca continua de qualquer maneira. Os pobres andam à procura, os ricos andam à procura, os doentes andam à procura, os que estão bem andam à procura, os poderosos andam à procura, os estúpidos andam à procura, os sensatos andam à procura - e ninguém sabe exatamente de quê.
Essa mesma procura — o que é e porque existe — tem de ser compreendida. Parece haver um hiato no ser humano, na mente humana. Na própria estrutura da consciência humana parece haver um buraco, um buraco negro. Continuamente se deitam coisas lá para dentro e as coisas continuam a desaparecer. Nada parece enchê-lo, nada parece ajudar a alcançar a plenitude. E a busca é muito febril. Você procura neste mundo, procura no outro mundo. Por vezes, procura no dinheiro, no poder, no prestígio, e por vezes procura em Deus, na felicidade, no amor, na meditação, na prece — e a busca continua. Parece que o homem apanhou a doença de procurar.
A busca não o deixa estar no aqui e agora, porque essa busca o leva sempre a qualquer outro lugar. A busca é uma projeção, a busca é um desejo, é uma ideia de que num outro lugar existe aquilo de que se precisa - que isso existe, mas que existe num outro lugar, não aqui, onde se está. Não há dúvida de que existe, mas não é neste momento - não é agora, mas num outro lugar. Portanto, ela existe ali, mas nunca aqui e agora. E isso continua a provocá-lo, continua a puxá-lo, a empurrá-lo. Continua a lançá-lo em loucuras cada vez maiores; fá-lo enlouquecer. E nunca é satisfeita.
Osho, in Intimidade

De cor

Vêm os três, em fila, pela trilha esticada à margem da rodovia. A escuridão dissolve seus corpos, entrevistos na escassa luz dos faróis dos caminhões, dos ônibus e dos carros que adivinha a madrugada. Caminham, o mato alto e seco roça as pernas de suas calças.
São pai e filho e um rapaz, conhecido-de-vista, que, encorajado, Pode sim. Tem dez anos que vou a pé. É uma economia danada no fim do mês, resolveu acompanhá-los.
O homem dirige empilhadeira numa transportadora no Limão.
O menino tem dez-onze anos, embora, franzino, aparente bem menos. Agora, largou a escola, vende cachorro-quente — com molho de tomate ou de maionese — e Coca-Cola em frente à firma onde o pai trabalha. À noite, guarda o carrinho no pátio da empresa, os vigias tomam conta. Quando crescer, perder-se Brasil afora, sonha, caminhoneiro.
O rapaz, desempregado, aceita qualquer empreitada, O negócio tá feio!
O menino vai à frente, o homem no meio, o rapaz atrás.
Esse aí ó, vale ouro, diz, orgulhoso, o pai, tentando adivinhar a feição do companheiro que ofega asmático às suas costas, pés farejadores. É de uma inteligência! Quer ver?
Vira-se, mira o letreiro do ônibus que passa velozmente, “Garanhuns”, fala.
Pernambuco, o menino replica, automaticamente.
O rapaz desdenha, “É isso?”
Ele sabe onde ficam todas as cidades do Brasil, o pai argumenta. Tem um mapa na cabeça, o peste.
Todas?
Todas!
O conhecido-de-vista então para, vira-se, mira o letreiro do ônibus que passa velozmente, Merda!, não consegue ler, Muito rápido... Merda!
Alagoinhas”, Essa, esse não acerta.
Bahia, o menino responde, displicente.
É Bahia?, o pai indaga, pressuroso.
É, o rapaz acede, contrariado.
Sem olhar para trás, aguarda outro ônibus que passa velozmente, “Itaberaba”, nome da cidade da mulher, agora não é…, “Bahia, também”, O reliento acertou! Desgramado!”.
Num falei?
Onde é que esse raio aprendeu essas coisas?
Sei não...
Ele não é de falar não, né? Ô menino! Ô!
É... Ele é mei caladão... Asselvajado...
Envaidecido, vira-se, mira o letreiro do ônibus que passa velozmente, “Governador Valadares”.
Minas Gerais.
Impressionante!, o rapaz conforma-se.
Caminham, o mato alto e seco pinica seus braços.
Já pensou levar ele na televisão?
Heim?
É... naqueles programas que as pessoas vão responder as coisas...
Televisão?
Televisão...
Dá dinheiro, né?
Ô, se!
O homem busca o filho que marcha à frente escondido dentro de uma jaqueta puída, dois números acima do seu tamanho.
Os ônibus os caminhões os carros as luzes São Paulo
Televisão…
Luiz Rufatto, in Eles eram muitos cavalos

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Os ipês coloridos


Quer ficar tranquilo? Contemple calmamente os ipês que fazem o seu trabalho de cores! Eles estão floridos por toda a cidade. O que eles nos dizem é que a natureza está cheia de beleza e tranquilidade. Para que servem as suas cores? Para eles, devem servir para alguma coisa. Para nós, não servem para nada. Suas cores não têm uso algum que lhes possamos dar. Mas elas, sem linguagem e sem fala, nos falam. Falam da simplicidade da vida. Falam da nossa tolice. Não sabemos florir. “Ah, como os mais simples dos homens são doentes e confusos e estúpidos ao pé da clara simplicidade e saúde em existir das árvores e das plantas. Sejamos simples e calmos, como os regatos e as árvores, e Deus amar-nos-á fazendo de nós belos como as árvores e os regatos, e dar-nos-á verdor na sua primavera, e um rio aonde ir ter quando acabemos” (Alberto Caeiro).
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

Abismo

Preciso sair de mim,
despir-me das vestes que me cobrem de frio.
Preciso deixar o copo vazio,
ver a vela queimar até o fim.
Preciso sair de mim sem olhar para trás,
para a tarde de alecrim que se desfaz,
contar até três.
Não sei se vale o sacrifício.
Não sei morrer.
Começo outra vez.
Flora Figueiredo

Em trânsito

       Você me acha ciumenta?”
Não.”
Nada?”
Nem um pouco.”
Não combinamos que sempre falaremos a verdade?”
Combinamos?”
Não tenho certeza. Mas não seria bom pro casamento?”
Uma mentirinha inocente não faz mal a ninguém.”
Então me acha.”
O quê?”
Um pouco.”
Ciumenta? Normal.”
Normal quanto?”
Como assim? Numa escala? De zero a dez?”
Muito ou pouco?”
Por que isso agora? Aconteceu alguma coisa de que não estou sabendo?”
Nada.”
Tinha alguém no bar me olhando, alguém disse alguma coisa?”
Por quê? Tinha alguém no bar te olhando?”
Não reparei.”
Alguém disse alguma coisa?”
Disse?”
A velha tática de responder perguntando.”
Contra a velha tática de jogar verde pra colher maduro.”
Você quer mudar de assunto e falar de agricultura agora?”
Começou este papo por quê…?”
Por quê…?”
Boa pergunta. Me sinto um criminoso. Por quê?”
Entram no carro. Ela dá a partida. Ele, com a carteira de motorista suspensa, vai como passageiro. Encaixam o cinto. Ela liga o pisca e, antes de sair da vaga, retoma o que ele considerava superado.
Para saber se você me acha ciumenta.”
Ciúme é que nem barata. Não cura nada, não alimenta.”
Não faz rodeios com metáforas.”
Vamos tentar manter nossa relação longe dessa praga.”
Tá vendo, então acha!”
O quê?”
Ciumenta!”
Acabou de passar por um farol vermelho.”
Sou ciumenta, que merda!”
Relaxa.”
Estou desabafando!”
Cuidado com a moto.”
Eu sei o que estou fazendo.”
Por que a irritação agora?”
Porque eu sei que sou muito ciumenta.”
É nada.”
Sou! E é uma droga isso!” E grita: “Sai da frente!”
Amor, era faixa de pedestres.”
Sempre atravessam quando quero passar?!”
É normal ter ciúme.”
Vou ficar louca.”
Vai?”
Vou xeretar seu e-mail, seu celular, sua carteira, contas bancárias, vou mandar te seguir, grampear seu telefone. E eu não quero isso. Então, melhor me dizer agora toda a verdade.”
Que verdade?”
Ela estaciona o carro na primeira vaga que encontra e o desliga. Acende um cigarro. Traga como se participasse de uma gincana: o vencedor é quem acaba o cigarro primeiro. Ficam mudos por um tempo. Ele espera, até dizer:
Não é perigoso ficar parado aqui a essa hora?”
A Joana.”
O que tem a Joana?”
Tenho ciúme dela. Folgada…”
Da Joana?! Mas… Já te disse milhões de vezes, fomos colegas na faculdade, é minha amiga, minha única amiga daquela época. Você acha que não é possível haver amizade entre um homem e uma mulher? Você tem amigos homens. Vários. Ela é minha única amiga mulher.”
Ela faz questão de me esnobar, contar coisas suas que não conheço, rir de piadas que só vocês dois entendem.”
Lógico! Eu conheço ela há muito mais tempo que conheço você.”
Isso que me irrita. Ela sabe de você mais do que eu.”
Claro.”
Por que ela sempre me provoca?”
Sei lá.”
Vai ver não gosta de mim.”
Vai ver não gosta de você.”
Tá vendo?!”
Ela joga o cigarro com raiva pela janela e liga o carro, o pisca, sai e acelera. Passa por outro farol vermelho e quase atropela outro motoboy.
Por que não gosta de mim, eu não sou fofa?”
Cuidado, o ônibus!”
Desisti de ser legal com ela.”
Isso mesmo, é uma idiota, sempre te provocando. Ela faz isso sempre.”
Faz?”
É, adora fingir que conhece segredos da minha vida que só ela sabe.”
Você também reparou?”
Claro. Fora que usa roupas apertadas, fica ridícula com aquela banha saindo pra fora da calça…”
Ridícula!”
Ela diminui a velocidade.
E o hálito de cigarro? Ridícula! Isso, amor, ali tem radar.”
Eu sei.”
Pode ir até um pouco mais rápido.”
Não é quarenta?”
Acho que é sessenta.”
Na dúvida, melhor ir a quarenta.”
Beleza.”
Ambos checam a velocidade em que passam, marcada no totem: 30 km/h.
Ah, ela é divertida.”
Joana?! Que nada. Vou cortar as relações totalmente. Cansei de ver ela te esnobando.”
Tadinha. É o jeito dela.”
É?”
Insegurança.”
Mas você não fica chateada? Não quero que nada nos atrapalhe.”
Normal ter ciuminho, vai dizer que você não tem.”
Evito.”
Ciúme não se evita. Só os mortos não sentem. Hoje mesmo. No bar. Ele me piscou.”
Mas aquele era o Edmundo!”
E daí? Não conta? Ele bem que ficou me olhando.”
Olhando pra lente da câmera. Eu que pedi para você tirar uma foto minha com ele. Vou ter ciúme?”
E o sorrisinho?”
Você queria que ele fizesse uma cara feia? Logo o Edmundo… O Animal?!”
Bem. Ele é gato. E aquelas pernas…”
Deu tempo para você olhar pras pernas dele?!”
Ele estava de bermudas. Todas estavam olhando pras pernas dele. E pra bunda.”
Passa este carro logo.”
Nenhum ciuminho? Olha a foto dele aí no celular.”
O cara jogou em todos os times, nem sou tão fã.”
Por que então você me pediu para tirar a foto?”
Inércia.”
Olha a foto:
É, um sorriso diferente…”
Não disse?”
Passa este carro! Sai da frente, seu cego, desgraçado, sai de casa por quê?!”
Ele me xavecou de leve.”
O cara daquele caminhão me xingou?! Emparelha!”
Repara na foto.”
Passa ele e para o carro! O que foi, palhaço?! Vai encarar?!”
É, amor, você tem razão. Olhando bem… Foi um sorriso burocrático.”
Ah, fugiu, né? Desgraçado!”
Piscou de agradecimento. Vou apagar esta foto.”
Do que a gente tava falando?”
Ih. A Joana mandou uma mensagem. Que fofa…”
O que ela quer?”
Perguntou se você ficou com ciúme do Edmundo.”
Que folgada…”
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz

Das possibilidades

Poderia definir-se o sentido de possibilidade como aquela capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser e de não dar mais importância àquilo que é do que àquilo que não é. Como se vê, as consequências desta disposição criadora podem ser notáveis; infelizmente, não é raro que façam aparecer como falso aquilo que as pessoas admiram e como lícito aquilo que elas proíbem, ou então as duas coisas como sendo indiferentes. Esses homens do possível vivem, como se costuma dizer, numa trama mais subtil, numa teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos; se uma criança mostra tendências destas, acaba-se firmemente com elas, e diz-se-lhe que tais pessoas são visionários, sonhadores, fracos, gente que tudo julga saber melhor e em tudo põe defeito.
Quando se quer elogiar estes loucos, chama-se-lhes também idealistas, mas é claro que com isso só se alude à sua natureza débil, incapaz de compreender a realidade, ou que a evita por melancolia, uma natureza na qual a falta do sentido de realidade é um verdadeiro defeito. O possível, porém, não abarca apenas os sonhos dos neurastênicos, mas também os desígnios ainda adormecidos de Deus. Uma experiência possível ou uma verdade possível não são iguais a uma experiência real e uma verdade real menos o valor da sua realidade, mas têm, pelo menos do ponto de vista dos seus partidários, algo de muito divino, um fogo, um ímpeto, uma vontade de construir e um utopismo consciente que não teme a realidade, antes vê nela uma missão e uma invenção. Ao fim e ao cabo, a Terra não é assim tão velha, e não se pode dizer que o seu estado alguma vez tenha sido verdadeiramente interessante. Se quisermos então distinguir de uma maneira fácil aqueles que se guiam pelo sentido do real dos que se guiam pelo sentido do possível, basta pensarmos numa determinada soma de dinheiro. Por exemplo: tudo aquilo que mil marcos contêm, efetivamente, de possibilidades, está de fato neles, quer os possuamos quer não; o fato de o senhor Eu ou o senhor Tu os possuírem não lhes acrescenta nada, como nada acrescentaria a uma rosa ou a uma mulher. Mas, dizem os do sentido de realidade, um louco faz com eles um pé-de-meia, enquanto um homem prático os põe a trabalhar para si; até a beleza de uma mulher aquele que a possui acrescenta ou retira alguma coisa. É a realidade que desperta a possibilidade, e nada seria mais errado do que negar isso. E no entanto, no cômputo global ou em média, as possibilidades serão sempre as mesmas até aparecer alguém para quem uma coisa real não é mais importante do que uma imaginária. É ele que dará às novas possibilidades o seu sentido e a sua finalidade, é ele que as desperta.
Robert Musil, in O homem sem qualidades

domingo, 29 de janeiro de 2017

Sobre sofrimento e prazer

Ao fazer o bem e mal, exercemos o nosso poder sobre aqueles a quem se é forçado a fazê-lo sentir; porque o sofrimento é um meio muito mais sensível, para esse fim, do que o prazer: o sofrimento procura sempre a sua causa enquanto o prazer mostra inclinação para se bastar a si próprio e a não olhar para trás. Ao fazer bem ou ao desejarmos o bem exercemos o nosso poder sobre aqueles que, de uma maneira ou de outra, estão já na nossa dependência (quer dizer que se habituaram a pensar em nós como nas suas causas); queremos aumentar o seu poder porque assim aumentamos o nosso, ou queremos mostrar-lhes a vantagem que há em estar em nosso poder; ficarão mais satisfeitos com a sua situação e mais hostis aos inimigos do nosso poder, mais prontos a combatê-los. O fato de fazermos sacrifícios para fazer o bem ou o mal não altera em nada o valor definitivo dos nossos atos; mesmo se arriscarmos a nossa vida, como o mártir pela sua igreja, é um sacrifício que fazemos à nossa necessidade de poder, ou a fim de conservar o nosso sentimento de poder.”
Friedrich Nietzsche, in A Gaia Ciência

Profeta urbano

Era a imagem de uma ruína do que antes devia ter sido um monumento de homem e portava as clássicas barbas do profeta. - Pois é - disse, limpando a boca com um gesto que acabou por levar seu dedo em riste em direção ao Corcovado [e no ímpeto quase cai de tão bêbado que estava].
- Pois é. Fica lá ele, coitado, o dia inteiro de braços abertos abençoando a cidade... [seu olhar dardejou em torno], abençoando a cidade que nem liga mais para ele. Eu, Mansueto, filho de Anacleto, digo isso porque sei. Eu, Mansueto, sei que aquele homem lá, que por sinal não é homem não é nada, é Jesus Cristo, filho de Maria, rei dos reis, tábua da salvação, esperança do mundo, conforto dos aflitos, pai dos pecadores [a partir daí sua voz embargou-se e ele começou a choramingar] - eu, Mansueto, sei que aquele homem lá está sozinho, está sozinho no alto daquela montanha também chamada Corcovado. Eu, Mansueto, sei que toda santa noite aquele homem lá derrama as suas santas lágrimas de pena por esta pobre cidade mergulhada no crime e no pecado...
Foi deste ponto em diante que eu tirei a caneta e comecei a anotar rápido o teor das lamentações do profeta urbano.
- Porque em cada coração habita a luxúria, a maldade e a sede de ouro! Porque todos só pensam no poder e no luxo! Porque cada um só quer ter o seu rabo-de-peixe [o profeta estava um pouco atrasado no tempo diante da atual mania dos Mercedes] e o povo nem sequer tem peixe para comer... [aí os soluços embargaram-lhe a voz e ele teve de parar para enxugar os olhos com a manga do paletó em farrapos].
E então exclamou com os punhos cerrados na direção do Cristo:
- Por que, Senhor, pergunto eu, Mansueto, filho de Anacleto, por que continuas abençoando esta cidade, de vício e abandonas o pobre ao seu triste destino de comer o resto dos ricos? Por que ficas de braços abertos feito um pateta em vez de lançar os vossos exércitos conta o fariseu - feito o seu Guimarães lá do armazém que só fia se apalpar a mulher dos outros. Eu sei porque eu vi. Português descarado! Ainda hei de fazer o mesmo com a tua mulher, ouviu! que embora seja uma santa senhora há de pagar pelo pecador!
Neste momento ele olhou em torno com ar de briga e dando comigo me interpelou com veemência:
- Você aí! Que sabes da maldade humana? Repara só nele lá em cima, de braços abertos, abençoando esta cidade toda esburacada, chorando de noite de tristeza porque seus filhos o abandonaram para cair na farra com mulheres que não valem nem para jogar no lixo, em todas essas Copacabanas [seu braço girou violentamente em torno] de mulatinhas todas pintadas como se fossem umas [censura], que aliás são! São umas [censura] de [censura] que saem remexendo a [censura] e atacando os homens como se fossem tigres. E para quê? Dizei-me para quê? Não sabe? Ah! [apontando-me] ele não sabe... Bem se vê que é um mocinho [obrigado, profeta!] rico que não sabe de nada senão cavar o ouro e ir gastar com as mulheres de todas essas Copacabanas! Mas eu te peço, Senhor: lança os vossos exércitos contra o fariseu e deixa dessa pose que não te adianta nada, porque esse negócio de ficar de braço aberto não resolve, a gente quer ver mesmo é diminuir o preço das coisas, as pessoas vão acabar mesmo é comendo umas às outras, porque carne não tem, só a carne dessas [censura] de todas essas Copacabanas que o raio de Deus fulmine e consuma e toque fogo em toda essa [censura] que anda por aí!
Dito o quê, ele me olhou com um olhar cheio de lágrimas, que parecia vir do fundo de um caos bíblico de recordações, misérias, humilhações e ressentimentos sofridos, moveu a cabeça com um ar trêmulo de animal vencido e saiu em frente, dois passos para cá, três para lá, em meio à risota e aos comentários dos circunstantes; mas mesmo de longe sua voz me chegava como a de um Isaías imprecando:
- Mas essa sopa vai acabar! Essa sopa vai acabar!
Vinicius de Moraes, in Para viver um grande amor