Eu
queria viver entre livros. Quando tinha dezesseis anos, em 1964,
arranjei um emprego depois da escola na Pygmalion, uma das três
livrarias anglo-germânicas de Buenos Aires.
A
dona era Lily Lebach, uma judia alemã que fugira do nazismo e se
estabelecera em Buenos Aires no final da década de 1930; ela me
confiou a tarefa diária de tirar o pó de cada um dos livros da loja
- método que, julgava Lily (com razão), faria com que eu ficasse
conhecendo rapidamente o estoque e sua localização nas prateleiras.
Infelizmente,
muitos dos livros tentavam-me para além da limpeza; eles queriam que
alguém os segurasse, queriam ser abertos e inspecionados, e, às
vezes, nem isso era suficiente. Umas poucas vezes roubei um livro
tentador; levei-o para casa, enfiado no bolso do casaco, porque eu
não tinha apenas de lê-lo: tinha de tê-lo, chamá-lo de meu. A
romancista Jamaica Kincaid, confessando crime semelhante de roubar
livros da biblioteca de sua infância, em Antigua, explicou que sua
intenção não era roubar: acontece que, “depois de ler um livro,
eu não conseguia ir embora sem ele”. Eu também descobri logo que
não se lê simplesmente Crime e castigo ou A tree grows ín
Brooklyn [Uma árvore cresce no Brooklyn]. Lê-se uma certa
edição, um exemplar específico, reconhecível pela aspereza ou
suavidade do papel, por seu cheiro, por um pequeno rasgão na página
e uma mancha de café no canto direito da contracapa. A regra
epistemológica para a leitura, estabelecida no século i , segundo a
qual o texto mais recente substitui o anterior, já que supostamente
o contém, quase nunca foi verdadeira no meu caso. No início da
Idade Média, partia-se do princípio de que os escribas “corrigiam”
os erros que percebiam no texto que estavam copiando, produzindo
assim um texto “melhor”; para mim, no entanto, a edição em que
havia lido um livro pela primeira vez tornava-se a editio
princeps, com a qual todas as outras deveriam ser comparadas. A
imprensa deu-nos a ilusão de que todos os leitores do Dom Quixote
estão lendo o mesmo livro. Para mim, ainda hoje, é como se a
invenção da imprensa jamais tivesse acontecido, e cada exemplar de
um livro continua a ser tão singular quanto a fênix.
E,
contudo, a verdade é que livros determinados emprestam certas
características a leitores determinados. Implícita na posse de um
livro está a história das leituras anteriores do livro - ou seja,
cada novo leitor é afetado pelo que imagina que o livro foi em mãos
anteriores. Meu exemplar de segunda mão da autobiografia de Kipling,
Something of myself [Algo de mim], que comprei em Buenos
Aires, tem um poema manuscrito na folha de guarda, datado do dia da
morte de Kipling. O poeta improvisado que possuía esse exemplar
seria um imperialista ardoroso? Um amante da prosa de Kípling que
via o artista através da pátina jingoísta? Meu predecessor
imaginado afeta minha leitura porque me vejo dialogando com ele,
defendendo essa ou aquela posição. Um livro traz sua própria
história ao leitor.
A
senhorita Lebach devia saber que seus empregados surrupíavam livros,
mas suspeito que permitia o crime, desde que achasse que não
estávamos excedendo certos limites implícitos. Uma ou duas vezes
ela me viu absorto em algum livro recém-chegado e simplesmente me
mandou voltar ao trabalho e levar o livro para casa, para lê-lo em
algum horário livre. Livros maravilhosos vieram a mim em sua
livraria: José e seus irmãos, de Thomas Mann, Herzog,
de Saul Below, O anão, de Pär Lagerkvist, Nove histórias,
de Salinger, A morte de Virgílio, de Broch, The green
child [A criança verde], de Herbert Read, A consciência de
Zeno, de Ítalo Svevo, os poemas de Rilke, de Dylan Thomas, de
Emily Dickinson, de Gerard Manley Hopkins, a lírica amorosa egípcia
traduzida por Ezra Pound, a epopéia de Gilgamesh.
Alberto
Manguel, in História da leitura
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