O
que se compreende comumente pela palavra “homem” é sempre uma
estipulação efêmera e burguesa. Certos impulsos mais crus estão
afastados e proibidos nessa convenção; um grau de consciência e de
cultura humana são reclamados à besta; uma pequena parcela de
espírito não é somente permitida, como também encorajada. O homem
desta convenção, como todos os outros ideais burgueses, é uma
conciliação, um intento tímido, de ingênua astúcia com o intuito
de enganar tanto a perversa mãe Natureza primitiva quanto o incômodo
primitivo pai Espírito de suas enérgicas exigências e para viver
na zona temperada entre eles. É por isso que a média das pessoas
permite e tolera aquilo que denomina “personalidade”, mas ao
mesmo tempo entrega a personalidade àquele Moloch chamado “Estado”
e intriga continuamente um com o outro. Assim o burguês queima hoje
por herege e enforca por criminoso aquele ao qual amanhã levantará
estátuas. Que o “homem” não é alguma coisa já criada, mas
apenas uma exigência do espírito, uma possibilidade longínqua, tão
desejada quanto temida, e que o caminho a que isto conduz só vai
sendo percorrido em pequenos impulsos e debaixo de terríveis
tormentos e sonhos, precisamente por aquelas raras individualidades,
para as quais hoje se prepara o patíbulo e amanhã o monumento — é
uma suspeita que vive também no Lobo da Estepe. Porém, o que ele
para si designa como “homem”, em contraposição ao seu “lobo”,
não é, em grande parte, senão aquele homem medíocre do
convencionalismo burguês. O caminho para o verdadeiro homem, o
caminho para os imortais, Harry adivinha-o perfeitamente e percorre-o
também aqui e ali com timidez, muito lentamente, pagando este avanço
com graves tormentos e com seu doloroso isolamento. Mas,
proporcionar-se, aspirar àquela suprema exigência, àquela
encarnação pura e buscada pelo espírito, andar o único caminho
estreito para a imortalidade, isto receia-o no mais profundo de sua
alma. Tem perfeita consciência de que isto conduz a tormentos ainda
maiores, à proscrição, à renúncia de tudo, talvez ao cadafalso;
e, apesar de saber que no fim deste caminho a imortalidade sorri
sedutora, não está disposto a padecer todos estes sofrimentos, a
morrer todas estas mortes. Tendo ainda mais consciência do fim da
encarnação do que os burgueses, fecha, todavia, os olhos e faz por
ignorar que o apego desesperado ao próprio eu, a desesperada ânsia
de viver, são o caminho mais seguro para a morte eterna, ao passo
que o saber morrer, rasgar o véu do mistério. ir procurando
eternamente mutações em si mesmo, conduz à imortalidade. Quando
adora os seus favoritos entre os imortais, Mozart, por exemplo, nunca
o faz, afinal, senão com olhos de burguês, e pretende explicar
doutamente a perfeição de Mozart apenas pelos seus altos dotes de
músico, e não pela grandeza de sua abnegação, paciência no
sofrimento e independência perante os ideais da burguesia, pela sua
resignação naquele extremo isolamento, semelhante ao do horto de
Getsêmani, que em torno do que sofre e está em vias de reencarnação
rarifica toda a atmosfera burguesa até convertê-la em gelado éter
cósmico. Mas, enfim, o nosso Lobo da Estepe descobriu dentro de si
ao menos a duplicidade fáustica; conseguiu determinar que à unidade
de seu corpo corresponde uma unidade espiritual, mas que, no melhor
dos casos, apenas se encontra em caminho, com uma larga peregrinação
à frente, para o ideal dessa harmonia. Desejaria vencer dentro de si
o lobo e viver inteiramente como homem, ou então, renunciar ao homem
e viver ao menos como lobo uma vida uniforme, sem desvios.
Provavelmente nunca observou com atenção um lobo autêntico; então
veria, talvez, que nem mesmo os animais possuem a unidade da alma,
que também neles, atrás da bela e austera forma do corpo, vive uma
multiplicidade de desejos e de estados; que também o lobo tem
abismos no seu interior e também sofre. Não! Com a volta à
Natureza o homem vai sempre por um falso caminho, cheio de
sofrimentos e sem esperanças. Harry não pode tornar a converter-se
inteiramente em lobo, e se tal acontecesse veria que nem mesmo o lobo
é simples e originário, mas alguma coisa já muito complexa.
Hermann
Hesse, in O lobo da Estepe
Nenhum comentário:
Postar um comentário