Aos
quatro anos de idade descobri pela primeira vez que podia ler. Eu
tinha visto uma infinidade de vezes as letras que sabia (porque
tinham me dito) serem os nomes das figuras colocadas sob elas. O
menino desenhado em grossas linhas pretas, vestido com calção
vermelho e camisa verde (o mesmo tecido vermelho e verde de todas as
outras imagens do livro, cachorros, gatos, árvores, mães altas e
magras), era também, de algum modo, eu percebia, as formas pretas e
rígidas embaixo dele, como se o corpo do menino tivesse sido
desmembrado em três figuras distintas: um braço e o torso, b; a
cabeça isolada, perfeitamente redonda, o; e as pernas bambas e
caídas, y. Desenhei os olhos e um sorriso no rosto redondo e
preenchi o vazio do círculo do torso. Mas havia mais: eu sabia que
essas formas não apenas espelhavam o menino acima delas, mas também
podiam me dizer exatamente o que o menino estava fazendo com os
braços e as pernas abertas. O menino corre, diziam as formas.
Ele não estava pulando, como eu poderia ter pensado, nem fingindo
estar congelado no lugar, ou jogando um jogo cujas regras e objetivos
me eram desconhecidos. O menino corre.
E
contudo essas percepções eram atos que podiam acontecer com estalar
de dedos - menos interessantes porque alguém os havia realizado para
mim. Outro leitor - minha babá, provavelmente – tinha explicado as
formas, e, agora, cada vez que as páginas revelavam a imagem daquele
menino exuberante, eu sabia o que significavam as formas embaixo
dele. Havia um prazer nisso, mas cansou. Não havia nenhuma surpresa.
Então,
um dia, da janela de um carro (o destino daquela viagem está agora
esquecido), vi um cartaz na beira da estrada. A visão não pode ter
durado muito; talvez o carro tenha parado por um instante, talvez
tenha apenas diminuído a marcha, o suficiente para que eu lesse,
grandes, gigantescas, certas formas semelhantes às do meu livro, mas
formas que eu nunca vira antes. E, contudo, de repente eu sabia o que
eram elas; escutei-as em minha cabeça, elas se metamorfosearam,
passando de linhas pretas e espaços brancos a uma realidade sólida,
sonora, significante. Eu tinha feito tudo aquilo sozinho. Ninguém
realizara a mágica para mim. Eu e as formas estávamos sozinhos
juntos, revelando-nos em um diálogo silenciosamente respeitoso. Como
conseguia transformar meras linhas em realidade viva, eu era
todo-poderoso. Eu podia ler.
Qual
a palavra que estava naquele cartaz longínquo, isso eu já não sei
(parece que me lembro vagamente de uma palavra com muitos “as”),
Mas a impressão de ser capaz de repente, de compreender o que antes
só podia fitar é tão vívida hoje como deve ter sido então. Foi
como adquirir um sentido inteiramente novo, de tal forma que as
coisas não consistiam mais apenas no que os meus olhos podiam ver,
meus ouvidos podiam ouvir, minha língua podia saborear, meu nariz
podia cheirar e meus dedos podiam sentir, mas no que o meu corpo todo
podia decifrar, traduzir, dar voz a, ler.
Alberto
Manguel, in História da leitura
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