sábado, 1 de outubro de 2016

O homem cadente

 
Ilustração: Nikolaus Heidelbach 


Quando me vieram chamar, nem acreditei: – É Zuzézinho! Está caindo do prédio.
E as gentes, em volta, se depressavam para o sucedido. Me juntei às correrias, a pergunta zaranzeando: o homem estava caindo? Aquele gerúndio era um desmando nas graves leis da gravidade: quem cai, já caiu.
Enquanto corria, meu coração se constringia. Antevia meu velho amigo estatelado na calçada. Que sucedera para se suicidar, desabismado? Que tropeção derrubara a sua vida? Podia ser tudo: os tempos de hoje são lixívia, descolorindo os encantos.
Me aproximava do prédio e já me aranhava na multidão. Coisa de inacreditar: olhavam todos para cima. Quando fitei os céus, ainda mais me perturbei: lá estava, pairando como águia real, o Zuzé Neto. O próprio José Antunes Marques Neto, em artes de aero-anjo. Estava caindo? Se sim, vinha mais lento que o planar do planeta pelos céus.
Atirara-se quando? Já na noite anterior, mas o povo só notara no sequente dia.
Amontara-se logo a mundidão e, num fósforo, se fabricaram explicações, epistemologias.
Que aquilo provinha de ele ter existência limpa: lhe dava a requerida leveza. Fosse um político e, com o peso da consciência, desfechava logo de focinho. Outros se opunham: naquele estado de pelicano, o cidadão fugia era de suas dívidas. Ninguém cobra no ar.
Houve até versão dedicadamente cristã. Um mirone, longilongo, vestido como se coubesse numa só manga, bradejou apontando o firmamento: – Aquilo, meus senhores, é o novo Cristo.
E o magricela prosseguiu, em berros: Cristo nos escancarou as portas de quê? Do céu, caros confrades. Do céu. Pois agora, o supramencionado Zuzé nos mostrava o caminho celestial. E fazia-o sem ter que morrer, o que era uma reconhecida vantagem.
Aquilo, meus senhores, é o Cristo descrucificado.
Mandaram que calasse. Outros, mais práticos, se ocupavam com o que se iria seguir. E vaticinavam um fim, enfim: – O tipo vai demorar assim, uma infinidade de dias.
Vai é morrer de sede e fome.
Se nem na terra se comia nas vigentes condições, quanto menos nas nuvens. A mim me abalava era a urgência de meter mãos na obra. Alguém devia fazer a certeira coisa. E gritei, entre os zunzuns: – Chamaram os bombeiros? Sim, mas estavam em greve. Estivessem no ativo faria pouca diferença: eles não tinham carros, nem escada, nem vontade. Eram, na verdade, bombeiros bastante involuntários.
Fazia-se tarde, as pessoas reentravam. Ficaram uns quantos, escassos e silenciosos.
Voltei a olhar. – A chover assim, o tipo vai ensopar, ganhar peso e desandar por aí abaixo.
Os deuses tivessem ouvidos. Parou de chover. E os dias seguintes prosseguiam como se o próprio ar tivesse parado. O voo de Zuzé já era um atractivo da cidade.
Negócios vários se instalaram. Turistas adquiriam bilhetes, cicerones do fantástico explicavam versões inéditas de como Zuzé nascera com penas no sovaco e descendia de uma família de secretos voadores. O fulano era o congénito destrapezista. O próprio tio alugava um megafone para que enviassem mensagens e votos de boas bênçãos. Até eu paguei para falar com o meu velho amigo. Quando, porém, me vi com o megafone não soube o que dizer. E devolvi o instrumento.
De fato, vieram as autoridades devidas, por via do chefe máximo das forças policiais se fizeram ouvir por devido altifalante: – Desça em nome da lei! O político por trás lhe segredava as deixas. As massas, os eleitores, ansiavam por um desempenho.
Continue a dar ordens. Continue, mais firme! – incitava o político. O porta-voz obedecia, estridenteando: – O seu comportamento, caro concidadão, é verdadeiramente antidemocrático.
Contra os direitos humanos, bichanava o político. Contra a imagem de estabilidade de que a nação carecia, ainda acrescentou o falante. Os doadores internacionais se espantariam com o desacontecimento. Mas Zuzé nem água ia nem água vinha. Sorria, em trejeito malandro.
E, agora, pronto: ponho ponto. Nem me alongo para não esticar engano. Pois tudo o que vos contei, o voo de Zuzé e a multidão cá em baixo, tudo isso de um sonho se tratou.
Suspirados fiquemos, de alívio. A realidade é mais rasteira, feita de peso e de pés na terra.
Mas eu, no dia seguinte, não estava certo do meu sossego. E fui ao local para me certificar de quanto eu devaneara. Encontrei tudo arrumado no regime da cidade. Lá estava o céu, vazio de humanos voadores.
Só o competente azul, a evasiva nuvem. E os pássaros mais sua avegação. E mais a praça, bem terrestre, desumanamente humana. Tudo sem notícia, tudo pouco sonhável.
De repente, vi a moça. A mesma do sonho. Ela, sem tirar nem opor. E, para mais, continuava olhando os céus. Me cheguei e ela, sem deixar de olhar para o firmamento, sussurrou: – Já não o vejo. E o senhor? – Eu, o quê? – O senhor consegue ver Zuzé? Menti que sim. Afinal, mais valia um pássaro. Mesmo de fingir. Deixássemos Zuzé voar, ele já não tinha onde tombar. Neste mundo, não há pouso para aves dessas. Onde ele anda, é outro céu.
Mia Couto, in O fio das missangas

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