A
divisão em lobo e homem, em impulso e espírito, mediante a qual
Harry procura explicar seu destino, é uma grosseira simplificação,
uma violentação do real em favor de uma explicação plausível
porém errônea da desarmonia que este homem encontra em si e que lhe
parece a fonte de seus não leves sofrimentos. Harry encontra em si
um “homem”, ou seja, um mundo de pensamentos, de sensações, de
cultura, de natureza domada e sublimada, e vê também, ao lado de
tudo isto, um “lobo”, ou seja, um obscuro mundo de instintos, de
selvagerismo e crueldade, de natureza bruta e insublimada. Apesar
desta divisão, ao que tudo indica tão clara de seu ser em duas
esferas, que são inimigas entre si, de quando em quando, já
percebeu que o lobo e o homem, durante algum tempo, vivem
reconciliados. Se Harry tentasse estabelecer em cada momento
determinado de sua vida, em cada um de seus sentimentos, a parte
correspondente neles ao homem e a parte que corresponde ao lobo,
acabaria por encontrar-se num dilema, e toda a sua bela teoria do
homem-lobo cairia por terra. Pois não há um único ser humano, nem
mesmo negro primitivo, nem mesmo os idiotas, convenientemente
simples, que possa ser explicado como a soma de dois ou três
elementos principais; e explicar um homem tão complexo quanto Harry
por meio da ingênua divisão em lobo e homem seria uma tentativa
positivamente infantil. Harry compõe-se não de dois, mas de cem ou
de mil seres. Sua vida não oscila (como a vida de cada um dos
homens) simplesmente entre dois pólos, tais como o corpo e o
espírito, o santo e o libertino, mas entre mil, entre inumeráveis
pólos. Não devemos surpreender-nos pelo fato de que mesmo um homem
tão inteligente e educado quanto Harry possa tomar-se por um lobo da
estepe e reduzir a rica e complexa imagem de sua vida a uma fórmula
tão simples, tão rudimentar e primitiva. O homem não é capaz de
pensar em alta escala, e mesmo o mais espiritual e altamente
intelectualizado pode contemplar o mundo e a si próprio através das
lentes de fórmulas enganosas e simplistas — especialmente a si
próprio! Pois parece ser uma necessidade inata e imperativa de todos
os homens imaginarem o próprio ser como unidade. E apesar de essa
ilusão sofrer com freqüência graves contratempos e terríveis
choques, ela sempre se recompõe. O juiz que se senta defronte ao
criminoso e o fita no rosto, e por um instante reconhece todas as
emoções, potencialidades e possibilidades do assassino em sua
própria alma de juiz e ouve a voz do assassino como sendo a sua, já
no momento seguinte volta a ser uno e indivisível como juiz, volta a
encerrar-se na envoltura do seu eu quimérico e cumpre seu dever e
condena o assassino à morte. É se em algumas almas humanas,
singularmente dotadas e de percepção sensível, se levanta a
suspeita de sua composição múltipla, e, como ocorre aos gênios,
rompem a ilusão da unidade personalística e percebem que o ser se
compõe de uma pluralidade de seres como um feixe de eus, e chegam a
exprimir essa ideia, então imediatamente a maioria as prende, chama
a ciência em seu auxílio, diagnostica esquizofrenia e protege a
Humanidade para que não ouça um grito de verdade dos lábios desses
infelizes. Então, para que perder aqui palavras, por que expressar
coisas que todos aqueles que pensam conhecem por si mesmos, quando
sua simples enunciação é uma nota de mau gosto? Assim, pois, se um
homem se aventura a converter numa dualidade a pretendida unidade do
eu, se não é um gênio, é em todo caso uma rara e interessante
exceção. Mas na realidade não há nenhum eu, nem mesmo no mais
simples, não há uma unidade, mas um mundo plural, um pequeno
firmamento, um caos de formas, de matizes, de situações, de
heranças e possibilidades. Cada indivíduo isolado vive sujeito a
considerar esse caos como uma unidade e fala de seu eu como se fora
um ente simples, bem formado, claramente definido; e a todos os
homens, mesmo aos mais eminentes, esse rude engano parece uma
necessidade, uma exigência da vida, como o respirar e o comer.
Hermann
Hesse, in O lobo da Estepe
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