Creio
firmemente que o confinamento em si mesmo, imposto a toda uma legião
de criaturas pela guerra, é dinamite se acumulando no subsolo das
almas para as explosões da paz. No seio mesmo da tragédia sinto o
fermento da meditação crescer. Não tenho dúvida de que poderosos
artistas surgirão das ruínas ainda não reconstruídas do mundo
para cantar e contar a beleza e reconstruí-lo livre. Pois na luta
onde todos foram soldados - a minoria nos campos de batalha, a
maioria nas solidões do próprio eu, lutando a favor da liberdade e
contra ela, a favor da vida e contra ela - os sobreviventes, de corpo
e espírito, e os que aguardaram em lágrimas a sua chegada
imprevisível, hão de se estreitar num abraço tão apertado que nem
a morte os poderá separar. E o pranto que chorarem juntos há de ser
água para lavar dos corações o ódio e das inteligências o
mal-entendido.
Porque
haverá nos olhos, na boca, nas mãos, nos pés de todos uma ânsia
tão intensa de repouso e de poesia, que a paixão os conduzirá para
os mesmos caminhos, os únicos que fazem a vida digna: os da ternura
e do despojamento. Tenho que só a poesia poderá salvar o mundo da
paz política que se anuncia - a poesia que é carne, a carne dos
pobres humilhados, das mulheres que sofrem, das crianças com frio, a
carne das auroras e dos poentes sobre o chão ainda aberto em
crateras.
Só
a poesia pode salvar o mundo de amanhã. E como que é possível
senti-la fervilhando em larvas numa terra prenhe de cadáveres. Em
quantos jovens corações, neste momento mesmo, já não terá
vibrado o pasmo da sua obscura presença? Em quantos rostos não se
terá ela plantado, amarga, incerta esperança de sobrevivência? Em
quantas duras almas já não terá filtrado a sua claridade indecisa?
Que langor, que anseio de voltar, que desejo de fruir, de fecundar,
de pertencer, já não terá ela arrancado de tantos corpos parados
no antemomento do ataque, na hora da derrota, no instante preciso da
morte? E a quantos seres martirizados de espera, de resignação, de
revolta já não terão chegado as ondas do seu misterioso apelo?
Sofre
ainda o mundo de tirania e de opressão, da riqueza de alguns para a
miséria de muitos, da arrogância de certos para a humilhação de
quase todos. Sofre o mundo da transformação dos pés em borracha,
das pernas em couro, do corpo em pano e da cabeça em aço. Sofre o
mundo da transformação das mãos em instrumentos de castigo e em
símbolos.
De
força. Sofre o mundo da transformação da pá em fuzil, do arado em
tanque de guerra, da imagem do semeador que semeia na do autômato
com seu lança-chamas, de cuja sementeira brotam solidões.
A
esse mundo, só a poesia poderá salvar, e a humildade diante da sua
voz. Parece tão vago, tão gratuito, e no entanto eu o sinto de
maneira tão fatal! Não se trata de desencantá-la, porque creio na
sua aparição espontânea, inevitável. Surgirá de vozes jovens
fazendo ciranda em torno de um mundo caduco; de vozes de homens
simples, operários, artistas, lavradores, marítimos, brancos e
negros, cantando o seu labor de edificar, criar, plantar, navegar um
novo mundo; de vozes de mães, esposas, amantes e filhas, procriando,
lidando, fazendo amor, drama, perdão. E contra essas vozes não
prevalecerão as vozes ásperas de mando dos senhores nem as vozes
soberbas das elites. Porque a poesia ácida lhes terá corroído as
roupas. E o povo então poderá cantar seus próprios cantos, porque
os poetas serão em maior número e a poesia há de velar.
Vinicius
de Moraes, em 1946
Nenhum comentário:
Postar um comentário