sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A novata

Sandrinha nunca esqueceu o seu primeiro dia na redação. Os olhares que recebeu quando se encaminhou para a mesa do editor. De curiosidade. De superioridade. Ou apenas de indiferença. Do editor não recebeu olhar algum.
- Quem é você? - ele perguntou, sem levantar a cabeça. Sandrinha se identificou.
- Ah, a novata - disse ele. - Você deve ser das boas. Recém formada e já botaram a trabalhar comigo. Você sabe o que a espera?
- Bem, eu...
- Esqueça tudo o que aprendeu na escola. Isto aqui é a linha de frente do jornalismo moderno. Aqui você tem que ter coragem. Garra. Instinto. Você acha que tem tudo isso?
- Acho que sim.
Ele a olhou pela primeira vez. Seu sorriso era cruel.
- É o que veremos - disse. - já vi muita gente quebrar a cara aqui. Desistir e pedir transferência para a crônica policial. É preciso ter estômago. Você tem estômago?
- Tenho.
Ele gritou:
- Dalva!
Uma mulher aproximou-se da mesa. Tinha a cara de quem já viu tudo na vida e gostou de muito pouco. O editor perguntou:
- Você já pegou o Rudi?
- Estou indo agora.
- Leve ela.
Dalva olhou para Sandra como se tivesse acabado de tirá-la do nariz. Voltou a olhar para o editor.
- Não sei, chefe. O Rudi…
- Quero ver do que ela é feita.
- Está bem.
Antes de saírem, Dalva perguntou para Sandra:
- Que equipamento você usa?
Sandra mostrou o que tinha dentro da bolsa. Dalva mostrou o seu.
- Certo. Vamos sincronizar gravadores. Testando. Um, dois, três...
As duas aproximaram-se da porta do apartamento de Rudi. Antes de bater na porta, a veterana avisou:
- Chegue para trás.
De dentro do apartamento veio uma voz assustada.
- Quem é?
- Abra!
A porta entreabriu-se. Rudi espiou para fora. Dalva empurrou a porta ao mesmo tempo que tirava o gravador da bolsa. Sandra a seguiu para dentro do apartamento. Rudi recuou.
- Isto é invasão de privacidade! - gritou.
- Quieto! Prepare-se para falar, Rudi. E lembre-se: tudo que você disser pode ser usado na edição de domingo.
- Não vou dizer nada.
Dalva forçou-o a sentar. O gravador já estava a milímetros da sua boca.
- Ah, vai - disse Dalva. - Vai dizer tudo. Loção de barba!
- Ahn... "Animal", de Givenchy!
- Cuecas justas ou tipo short?
- Justas.
- De que loja?
- Não tenho uma loja favorita.
- Pense melhor, Rudi.
- Está bem. A "Papoulas".
- Sua cor favorita.
- Verde. Não! Azul!
- Vamos, Rudi. É verde ou é azul?
- Azul, azul!
- Quem você levaria para uma ilha deserta?
- Não sei. Me deixem pensar.
- "Pensar'", Rudi? "Pensar"?! Você acha que está respondendo para o suplemento cultural? Vamos, quem você levaria para uma ilha deserta?
Dalva registrou com surpresa que Sandrinha é que fizera a pergunta. Rudi respondeu.
- A minha mãe. Não. A Malu Mader.
- Qual delas?
- Não pode ser as duas?
- Você sabe que não, Rudi. Estamos perdendo tempo. Quem?
- A Malu Mader.
- Pasta de dente.
- Crest.
- Seu livro de cabeceira.
- Kalil Gibran.
- Maior emoção.
- Foi, foi... Quando minha cadela "Tutsi" teve filhotinhos.
- Prato preferido?
- Não sei. Não sei!
- Sabe sim.
- Picadinho de carne com ovo.
- Sua filosofia.
- Viver e deixar viver.
- Se você não fosse você, quem gostaria de ser?
- 0... o...
- Estamos esperando!
- O Gerald Thomas ou o padre Marcelo Rossi!
- Qual dos dois?
- Fale!
Agora Sandrinha também tinha seu microfone perto da boca de Rudi.
- O padre Marcelo Rossi!
Rudi começou a soluçar. As duas se olharam. Dalva permitiu-se um sorriso.
- Você é boa, novata. Acho que vai se dar bem neste trabalho...
- Obrigada. Mas Sandra não tinha terminado.
- Não pense que acabou ainda, Rudi. Sabonete!
Luís Fernando Veríssimo, in Comédias para se ler na escola

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