À
nossa frente erguia-se uma gaiola muito alta, larga e funda, de onde,
a espaços, em rajadas vagas, irrompia um alegre piar de aves.
Periquitos, bicos-de-lacre, viuvinhas, peitos-celestes, anduas,
rolas, abelharucos. Estávamos sentados em cadeiras de plástico,
muito gastas, sob a sombra perfumada de uma mangueira frondosa. À
nossa esquerda corria um muro baixo, em adobe, pintado de branco.
Mamoeiros altíssimos, carregados de mamões, requebravam-se, junto
ao muro, num langor de mulatas. Olhando para a direita, na direcção
da casa, alinhavam-se filas de laranjeiras, limoeiros, goiabeiras.
Ainda mais adiante um enorme embondeiro dominava a horta. Parecia ter
sido posto ali para me lembrar que aquilo era apenas um sonho. Pura
ficção. Galinhas ciscavam em meio ao barro vermelho e ao capim
muito verde, arrastando atrás ninhadas de pintos. José Buchmann
abriu para mim um límpido sorriso de vitória.
– Seja
bem-vindo ao meu humilde sobrado.
Bateu
as palmas e logo uma moça esguia, tímida, de vestidinho curto e
sandálias de plástico nos pés ligeiros, emergiu da penumbra.
Buchmann pediu-lhe que trouxesse uma cerveja gelada, para ele, para
mim um sumo de pitanga. A rapariga baixou a cabeça, sem uma palavra,
e desapareceu. Voltou pouco depois equilibrando num tabuleiro
colorido uma garrafa de cerveja, dois copos e um jarro com o sumo.
Provei o sumo, desconfiado. Era bom, acre e doce ao mesmo tempo,
muito fresco, com um perfume capaz de iluminar a alma mais sombria.
–
Estamos na Chibia, mas isso já você
sabe, não é verdade? Por muito que agradeça ao nosso comum amigo,
ao nosso querido Félix, por me ter inventado este chão, nunca lhe
agradecerei o suficiente.
–
Desculpe-me a curiosidade. Existe
realmente uma campa, num cemitério aqui da região, com o nome de
Mateus Buchmann?
–
Existe. Havia algumas campas destruídas,
e entre elas, por que não?, a do meu pai. Mandei fazer a lápide.
Você viu-a. Viu a fotografia, não viu?
–
Compreendo. E as aguarelas de Eva Miller?
–
Encontrei-as realmente num antiquário,
na Cidade do Cabo, uma loja fabulosa, que vende de tudo um pouco, de
joias a álbuns de fotografias, passando por velhas máquinas
fotográficas. Eva Miller é um nome comum. Deve haver no mundo
algumas dezenas de pintoras de aguarelas com esse nome. A breve
notícia da morte dela, n’ O Século de Joanesburgo, essa sim,
inventei-a eu, com a ajuda de um velho tipógrafo português, meu
amigo. Eu precisava que o próprio Félix acreditasse na minha
biografia. Se ele acreditasse nela toda a gente acreditaria. Hoje,
sinceramente, até eu acredito. Olho para trás, para o meu passado,
e vejo duas vidas. Numa fui Pedro Gouveia, noutra José Buchmann.
Pedro Gouveia morreu. José Buchmann regressou à Chibia.
– Você
sabia que Ângela era a sua filha?
–
Sabia. Saí da cadeia em mil novecentos e
oitenta. Estava destruído, completamente destruído – fisicamente,
moralmente, psicologicamente. Edmundo foi comigo ao aeroporto,
colocou-me num avião e enviou-me para Portugal. Ninguém esperava
por mim. Já não me restava família lá, pelo menos conhecida, não
me restava nada, a mínima ligação. A minha mãe morreu em Luanda,
coitada, enquanto eu estava preso. O meu pai vivia no Rio de Janeiro,
há anos, com uma outra mulher. Nunca tive muito contacto com ele. Eu
nasci em Lisboa, sim, mas fui para Angola canuco, ainda nem sequer
sabia falar. Portugal era o meu país, diziam-me, diziam-me isso na
cadeia, os outros presos, os bófias, mas eu não me sentia
português. Fiquei em Lisboa, dois ou três anos, a trabalhar num
semanário como revisor. Foi nessa altura, em contacto com os
fotógrafos do jornal, que me comecei a interessar pela fotografia.
Tirei um curso rápido e parti para Paris. Dali fui para Berlim.
Comecei a trabalhar como repórter fotográfico e durante anos,
décadas, percorri o mundo, de guerra em guerra, tentando esquecer-me
de mim. Ganhei muito dinheiro, muito dinheiro mesmo, mas não sabia o
que fazer com ele. Nada me atraía. A minha vida era uma fuga. Uma
tarde achei-me em Lisboa, um ponto no mapa entre dois pontos, um
lugar de passagem. Num restaurante dos Restauradores, onde entrei
atraído pelo cheiro aos miúdos de frango que a minha mãe fazia,
reencontrei um velho camarada. Foi ele quem, pela primeira vez, me
falou em Ângela. O filho da puta, o Edmundo, divertia-se a
contar-me, sempre que me interrogava, como matou a minha mulher.
Também me disse que tinham assassinado a bebê. Afinal, não a
mataram. Torturaram-na à frente da mãe, você ouviu-o!, mas não a
mataram. Entregaram-na à Marina, a irmã da Marta, e foi ela quem a
criou. Criou-a como a uma filha. Quando soube disso fiquei muito
transtornado. Tinham passado os anos e eu envelhecera. Queria
conhecer a minha filha, queria estar com ela, mas faltava-me a
coragem para lhe contar a verdade. Fiquei obcecado. Veio-me um ódio,
um rancor selvagem contra aquela gente, contra o Edmundo. Queria
matá-lo. Achei que se o matasse poderia olhar de frente a minha
filha. Matando-o talvez eu renascesse. Regressei a Luanda sem saber
muito bem o que fazer. Temia ser reconhecido. No hotel, numa mesa do
bar, encontrei um cartão de visitas do nosso amigo Félix Ventura.
“Dê aos seus filhos um passado melhor.” Muito bom papel. Muito
bem impresso. Foi então que tive a ideia de o contratar. Com outra
identidade seria mais fácil circular pela cidade sem atrair
suspeitas. Podia matar Edmundo e desaparecer. Mas queria que ele
soubesse porque ia morrer, queria confrontá-lo com os seus crimes,
no fundo, reconheço, queria vingar-me. Foi difícil encontrá-lo e
quando o encontrei descobri que enlouquecera. Pelo menos parecia
louco. Fui com ele a casa de Félix porque precisava de ouvir a
opinião de alguém. Félix achou que sim, que Edmundo estava louco,
e nessa altura pensei em desistir. Não podia matar um louco. Uma
tarde esperei que o tipo deixasse a sarjeta onde se costumava
esconder e entrei. Ali, naquele buraco imundo, havia um colchão,
roupa suja, revistas, literatura marxista, e, acredita?, uma série
de arquivos com relatórios da segurança de estado sobre dezenas de
pessoas. O meu processo era um dos primeiros. Estava eu ali, com uma
lanterna numa das mãos, e o arquivo na outra, exaltado, confuso,
quando o Edmundo apareceu de repente, tipo alma penada. Saltou da
sarjeta lá para dentro e caiu a dois passos de mim. Segurava uma
faca na mão. Ria-se. Meu Deus, o riso dele! disse-me: os dois de
novo cara a cara, camarada Pedro Gouveia, desta vez acabo contigo
– e atacou-me. Afastei-o com um pontapé, tirei a pistola do cinto,
eu tinha comprado aquela pistola dias antes no Roque Santeiro, veja
lá, e disparei. A bala atingiu-o no peito, atingiu-o de raspão, eu
larguei a lanterna, larguei tudo, aflito, e o tipo escalou o buraco.
Agarrei-o pelas pernas, com força, ele sacudiu-se, esgueirou-se,
soltou-se, deixando-me as calças na mão. Fui atrás dele. O resto
já você sabe. Estava lá. Foi testemunha de tudo o que se passou
depois.”
– E
Ângela, sabia que você era o pai dela?”
– Ela
jura que sim. Contou-me que Marina lhe escondeu a tragédia durante
muitos anos. Até que um dia, era inevitável, alguém, uma colega,
creio eu, uma amiga da faculdade, insinuou qualquer coisa. Ângela
reagiu muito mal. Zangou-se com Marina e com o marido dela, os seus
pais, afinal, os seus pais verdadeiros, excelentes pessoas os dois.
Zangou-se com eles e saiu de Angola. Foi para Londres. Foi para Nova
Iorque. Soube que eu era fotógrafo e isso levou-a a interessar-se
pela fotografia. Tornou-se fotógrafa, como eu, e, como eu, tornou-se
nômada. Há alguns meses você estranhou a coincidência de sermos
ambos fotógrafos e de termos regressado ao país mais ou menos na
mesma altura. Você não acreditava que fosse uma coincidência. Bem,
como vê, não foi inteiramente uma coincidência. Ângela jura que
mal me viu, uma noite, lembra-se?, uma noite em vossa casa, jura que
mal me viu, mal pousou os olhos em mim, adivinhou quem eu era. Não
sei. Quando penso nesse encontro o que me ocorre é o susto. Para mim
foi um estranho encontro. Eu, sim, sabia quem ela era. Nenhum de nós
disse nada. Ficamos calados. Passaram os meses e então, naquela
tarde, eu disparei contra Edmundo e ele correu a procurar refúgio
junto da única pessoa que o podia acolher – Félix Ventura,
ex-aluno do Professor Gaspar, um homem da tribo...
José
Buchmann calou-se. Bebeu o que restava da cerveja, num trago longo, e
ficou depois, absorto, os olhos mergulhados na densa folhagem da
mangueira. Estava-se bem naquele quintalão. A sombra caía sobre nós
como um jorro de água fresca. Um áspero ardor de cigarras somou-se
por instantes ao canto dos pássaros. Veio-me um sono, uma vontade de
fechar os olhos e dormir, mas resisti, certo de que se adormecesse
naquele momento acordaria instantes depois transformado numa osga.
– Tem
notícias da Ângela?
– Vou
tendo. Deve estar neste momento a descer o Amazonas numa daquelas
barcaças lentas, preguiçosas, que à noite se cobrem de redes de
dormir. Há muito céu por ali. Muita luz na água. Espero que se
sinta feliz.
– E
você, é feliz?
– Eu
estou finalmente em paz. Não receio nada. Não anseio por nada. Acho
que a isto se pode chamar felicidade. Sabe o que dizia Huxley? A
felicidade nunca é grandiosa.
– O
que vai ser de si?
– Não
faço ideia. Provavelmente serei avô.
José
Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados
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