No
portão, Lauro espiou a luz da janela. Toda noite olhava muito a
janela iluminada.
Entrando,
deixou o portão aberto para os cães vagabundos.
Abriu
a porta da cozinha, descansou o embrulho na mesa. Viu o bilhete de
Sílvia — não era de amor. Sentou-se, chapéu na cabeça. Não
acendeu a luz, à espera. Ainda era dor, já não podia chorar. Na
penumbra distinguia a louça na pia, adivinhava o jantar de Sílvia.
Cascas de maçã... Ela não perdera o apetite. E, antes de erguer-se
da cadeira, acender a luz e lavar a louça, deixava pender a cabeça
na mesa.
Eu
era feliz, repetia, bem que era feliz. A essa hora, deitado com
Sílvia na imensa cama de casal. “Que está fazendo?” Quieto, de
olho fechado. Sílvia ergueu o lençol e surpreendeu-o de mão no
peito.
Ah,
o riso canalha ao descobrir que ele estava rezando... Porque feliz
agradecia a Deus.
Toda
noite, um passeio depois do jantar, lia o jornal na cama e rezava.
Enfim dormia, mas não Sílvia, a olhar para o teto.
Lauro
chegou mais cedo: a casa deserta. Esperou por ela, sentado à mesa da
cozinha, o chapéu ainda na cabeça. Sílvia entrou, com a franjinha
desfeita. Diante dele abriu o casaco: estava nua. Desceu a escada,
toda vestida,
maleta na mão, nem disse adeus.
No
mesmo lugar quando ela voltou: o outro não a quisera. Jogou a maleta
ao pé da escada. E, para se vingar do amante, contou-lhe o nome.
Depois o nome de outros, não fora o primeiro. Nua sob o casaco,
deitavam-se em qualquer lugar. Estendeu-se no formigueiro, comida
pelas formigas, não se ergueu do chão. Recolheu-os em casa, na cama
do casal.
“Por
que, meu Deus?” insistia, em desespero. “Te odeio” — acudiu
ela — “eu te odeio”. Odiá-lo, como podia? Sílvia abalava do
leito, à janela com falta de ar... “Um chazinho, meu bem?”
intrigado, sentava-se na cama. Aflita no meio da noite, a saquear a
geladeira. Quando a mulher se deitava, Lauro dormia de novo, ouvindo
os arrotinhos. Como no tempo de noiva, queria saber: “Ainda se vê
a marca, Laurinho?” Na testa a cicatriz escondida, ora sob um
cacho, ora sob a franjinha.
Lauro
ergueu a cabeça, escutou os ruídos. Nenhuma torneira pingando. Não
mais lançaria os gritos daquela noite. Na banheira, outra vez nua,
os pulsos riscados... No delírio chamava o amante.
Trancou-se
no quarto, com vergonha dos filhos. Lauro os mandou para casa da tia,
noutra cidade, despediu a criada. Apenas os dois na casa; ele dormia
no quarto de hóspede.
Horas
inesperadas vigiou a casa. Entreviu-a na janela, de combinação
preta e, ai dele, a franjinha penteada... Acendia o gás, fazia café
para os dois. Tomava uma xícara, esgueirava-se à sombra das árvores
pelas ruas desertas.
Trazia
uma ou duas maçãs no bolso. Sílvia era louca por maçã verdoenga,
que belisca a língua. Ele as espalhava no seu caminho. Muitas
apodreceram nos degraus da escada até que, uma noite, tornou a
comê-las.
De
regresso, lavava a louça empilhada na pia. Almoçava e jantava só,
na mesa nua da cozinha; a toalha suja atirada no canto. Sílvia no
quarto, aguardando que ele saísse, para descer a escada. Culpava-o
ainda do outro... Partiu jubilosa de maleta na mão, o tipo não a
quis. Voltou, falsa arrependida. Não para ele ou para os filhos —
outra casa não tinha. Subiu a escada aos gritos: “Te odeio, Lauro.
Nunca mais perdoo”.
A
maldita dor, ofegando, mão no peito... Já doía menos,
envelheceriam na mesma casa, cada um no seu quarto.
Enfim
apanhou na mesa o bilhete de Sílvia, guardou-o no bolso. Não
precisava ler, sabia o que era. Pedia cigarro turco, perfume, verniz
para unha... Maçã, trazia por sua conta. Não a odiava, não a ela.
E ao outro? Por causa do outro deixou de rezar.
Envelheceria.
Os filhos eram homens, dele não careciam. Seu destino na casa de luz
apagada, jardim abandonado, janela fechada. Naquela casa com Sílvia.
Sabia quando tinha entrado no banheiro ou na cozinha. Abria a porta e
esperava, chapéu na cabeça: o beijo da maçã no escuro.
Sílvia
não queria envelhecer: roía a unha, depois a pintava, roía e
pintava de novo. Em vão passeava nua no quarto. E buscava, cada dia,
um fio branco na franjinha. Tantos, não poderia arrancá-los. No
bilhete anterior não encomendou tintura para cabelo? Rezava pelo
perdão dos filhos, chorava diante de seus retratos. E engordava. Com
a vida reclusa engordava, os cabelos perdiam o brilho, os olhos seu
clarão. Nem um outro, senão ele, havia de querê-la.
Levantou-se
da cadeira, retirou a maçã do embrulho, foi até a escada. Voltou à
cozinha, acendeu a luz e pendurou o chapéu. Abriu a torneira da pia.
A água correu mansamente pelo coração aflito: não estava só.
Dalton
Trevisan,
in Novelas
nada exemplares
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