Naquela
tarde eu me sentei na esplanada, cobrando sossego para minha alma
privada. Em pausa de viagem, aguardava meu regresso à capital.
Naquela transitória vila, fazia muito Norte e o calor apertava. A
gente se desmoçava só de tocar a atmosfera. Eu, em verdade, me
arfixiava. Por isso, escolhi assento fora, na esperança de um
fresco. O bar se chamava A Brisa do Inferno e merecia o título. Ali
fiquei, me entretendo a ver passar as moças, dessas mais ligeiras
que as libelinhas que fazem amor no ar. Até que vi um homem escuro,
barulhando, algumas mesas adiante. Sem aparência de razão, o tipo
esbracejava no ar, convocando suores e atenções. Perguntei o que
ele fazia mas me ordenaram respeitoso silêncio:
—
Cale-se!
Esse é Xidakwa. Ele está a abraçar Deus!
Quem
é vivo sempre desaparece. Xidakwa? O homem era de meu lugar-natal,
bêbado de carreira, criatura de vasto e molhado currículo. O que
fazia ele tão distante da sua original cidade? Me aproximei na vã
esperança de ser reconhecido. Recruzaram em seus olhos muitas
névoas. Por fim, endireitou uma frase:
— Eu,
me desculpe, me esqueci o meu nome.
E
virando-se para a multidão solicitou:
—
Alguém
me chama, por favor...
A
vida é água endurecendo a pedra. Afinal, requer-se fartura de
coração. Eu ajudei o embriagado a reganhar assento. E lhe enchi o
copo com o que restava de minha garrafa. Se recordava de nosso comum
bairro, lá no antigamente? Ele declarou, apontando a cervejaria:
— Aqui,
neste bar, é que é a minha pátria!
E
ali ficou, toda a manhã. Consecutivo, o homem dava deferimento às
garrafas. No fim do dia, o dono da cervejaria me contou. Que numa
distante data o meu conterrâneo chegara e se alojara ali,
hereditário e definitivo. Lhe pediam contas e Xidakwa se explicava,
em despropósito:
— Estou
à espera de uma certa mulher, é uma que não cabe neste mundo.
— Mas
bebendo assim?, se atreviam querer saber.
— O
que estou bebendo não é cerveja. Estou bebendo é o tempo, a ver se
ela não demora tanto...
Ao
princípio, o dono da cervejaria ainda protestou. Mas depois resolveu
recolher vantagem do assunto. O bêbado ajudava a espalhar falagens
nas redondezas. Sua presença chamava nova clientela. E, afinal,
sempre a linha do tempo traz um anzol de futuro: acabaria por chegar
alguém, parente ou amigo, que pagaria a longa despesa do bebedor.
De
fato, um dia, vieram a mulher, os filhos, e muito-muito, um cunhado
de Xidakwa. Pediram, rogaram, imploraram. Ele que voltasse a casa,
seu devido lugar. Eles lhe tratariam com extensas felicidades.
Debalde. Cismandão, o homem respondeu uma única vez:
— Vos
conheço, vocês são desses: olham o leão e logo pensam na jaula.
A
família, pesarosa, deixou de lhe aplicar esperança. Antes de
partirem, o dono ainda falou com o cunhado. Quem iria pagar passadas
e futuras despesas? O cunhado lavava as mãos, pulseiras e anéis. O
cervejeiro decidiu por expulsar o embriagado. Deixou que ele dormisse
naquela última noite, fim do prazo para sua complaciência.
Mas
sucedeu o imprevisto, não fosse sempre no Sul que tropeçassem a
lógica e a estatística. Nessa mesma noite, na vila entraram os
pistoleiros, em exercício de vandalismo armado. Os habitantes, sem
exceção, procuraram o mato. Deixavam tudo, bens e haveres. A vila
ficou deserta. Apenas Xidakwa persistia, em alheia e distante
neblina. Os facínoras cercaram o bar, prontos a afiar a faca nas
costelas do incauto ébrio. Quando sentiu sombras se avizinhando,
Xidakwa empunhou a garrafa, gesto em riste. Queria ofertar sua
simpatia, boa-vindar os recém-chegados. Mas entre os assaltantes uma
voz fez soltar o aviso:
— O
tipo está armado!
E
cruzaram-se mortais disparos. Um bandido tombou, imediato, buraco
acrescentado no alvo de sua testa. Os restantes malfazentes
panicaram, em desarranjada fuga. Na manhã seguinte, o povo empossou
Xidakwa, o camarada Xidakwa, como herói bravio, dono de
intrepiduras. Mais que isso: lhe alcunharam de bebedor santificado. E
correu a versão que ele adivinhava os futuros, sabia o insabível. E
ali começaram a vir pedir conselhos e receitas. O homem recebia os
afligidos, mandava vir mais cerveja. Seu olhar rodopiava dentro das
órbitas, incapaz de soletrar uma visão. Sempre declarava a mesma e
igual sentença, tonteando palavras:
— A
partir de hoje...
E
mais não dizia. Caía na cadeira, redondo que nem um planeta. Seu
vaticínio não era senão a vertigem de um silêncio. O povo, mesmo
assim, lhe cobria de fé. O que faltava em suas palavras a boa gente
preenchia com sabedorias imputadas. Os deuses, afinal, dispensam as
explicadas palavras.
Mas
o homem, se via, há muito se apeara de sua alma. Emagrecia, a molhos
vistos. Definhava. Já nem bebia. Encomendava uma garrafa e ficava a
olhar, contemplinativo. O bebedor adoecia, o fígado desentendido com
as vísceras. Veio o médico português, em visita de raspão. O
lusitano doutorou: que a vida de Xidakwa estava por uma espuma,
restavam-lhe uns quantos dias.
Isso
me contou o cervejeiro, na esquina da noite. Na manhã seguinte,
acordei com outro sentimento por Xidakwa, como quem partilha a
véspera do condenado. Fui à cervejaria disposto a despender com ele
urgentes memórias. Junto com ele, queria aprender a beber o tempo,
cada gole uma idade. E fui ao bar, procurei fora e dentro. Mas
Xidakwa não vi, em nenhum assento ele estava.
— Não
conhece o sucedido?
E
o dono me relatou isso que todos tinham visto. Eram às tantas da
noite quando passou por ali uma forasteira, vinda nem se sabe de quem
nem de onde. Dizem, duvide-se: ela era da cor do milho, amarelosa. O
certo e testemunhado é que a dama se assentou na mesa de Xidakwa. E
ele, em trémula ternura, lhe pediu uma demora, era só mais aquele,
o último copo. A mulher sorriu. Depois, pegou as mãos do bebedor e,
lenta e impossivelmente, foi levando o Xidakwa para dentro do copo.
Façam-se contas aos tamanhos, é coisa de se descrer: o homem que se
insulara em distante cervejaria, emigrava agora, em líquida
eternidade, para dentro da cerveja.
Me
sentei, atravessado por não sei qual sentimento. Pedi cerveja,
garrafa atrás de garrafa. E fiquei bebendo, lento, sentindo em cada
gole o vagaroso paladar do tempo. A meio da tarde me vieram alertar
que o comboio do meu regresso estava já soando os últimos apitos.
Lancei um vago gesto, a desentender. Chegada a noite, o dono me veio
avisar que chegara a hora de fechar. Respondi que ficava, me sentia
ali em aconchego de pátria:
— Sim,
eu estou esperando alguém…
Mia
Couto,
in Estórias
abensonhadas
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