Toda
a estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é um fumo, leve de
mais para se prender na vigente realidade. Toda a verdade aspira ser
estória. Os factos sonham ser palavra, perfumes fugindo do mundo. Se
verá neste caso que só na mentira do encantamento a verdade se casa
à estória. O que aqui vou relatar se passou em terra sossegada,
dessa que recebe mais domingos que dias de semana.
Aquele
chão ainda estava a começar, recém-recente. As sementes ali se
davam bem, o verde se espraiando em sumarentas paisagens. A vida se
atrelava no tempo, as árvores escalando alturas. Um dia, porém, ali
desembarcou a guerra, capaz de todas as variedades da morte. Em
diante, tudo mudou e a vida se tornou demasiado mortal.
Vieram
da Nação apressados funcionários. Os delegados da capital sempre
cumprem pressas quando estão longe de sua origem. E avisaram que os
viventes tinham que sair, convertidos de habitantes em deslocados.
Motivos da segurança. Chamaram um por um, em ordem analfabética.
Chegou-se a vez de Felizbento. O velho escutou, incrédulo como o
sapo que comeu a cobra. Sua única substância foi um suspiro. Ficou
como estava, enrolando a alma. Os outros se resumiram, embrulho e
vulto, nas traseiras dos camiões. Mas Felizbento se deixou imóvel.
O funcionário chefiou a situação, ordenando que se depressasse.
Que fosse, igual aos outros.
— Não
ouviu a ordem? Agora, implementa.
Felizbento
deu uma segunda demão no silêncio, esfregou um pé no outro. Puxava
lustro em pé descalço? Ou apontava o chão, lugar único de sua
existência? Sempre calara suas dores, mais fornecido de paciência
do que de idade. Finalmente, apontou a vaga mata e falou:
— Se
vou sair daqui tenho que levar todas essas árvores.
O
nacional funcionário economizou paciência e lhe disse que, mais
semana, eles voltariam para o carregarem, nem que fosse à bruta
força. E foram.
No
dia sequente, o homem pôs-se a desenterrar as árvores, escavando
pelas raízes. Começou pela árvore sagrada do seu quintal.
Trabalhou fundo: lá onde ia covando já se desabria um escuro total.
Para dar seguimentos na fundura passou a levar um petromax, desses
que trouxera do Johnne. E tempo após tempo, se demorou nesse
serviço.
Sua
esposa lhe apontava, desapontada, a incondizência de seus atos. Nem
valia a pena perguntar nada a Felizbento. Roupa de morto já não se
amarrota. Teima de velho não se desfigura. A senhora ficava à
janela como um relógio parado. No escuro da noite, a velha só via a
locomoção do petromax, parecia nenhuma mão lhe segurava.
Aflita
a mulher desenhou o plano. Ela se ofereceria, imitando os tempos em
que seus corpos desacreditavam ter limite. Foi ao fundo dos armários,
onde nem as baratas ousam. Tirou a saia de flores, os sapatos de bico
e ponta. E lhe fez noturna espera, roupa e cheiros a apetecerem.
Lembrava as antigas palavras de Felizbento, nesses outroras:
— Se
é para namorar o melhor é a noite.
Os
que já namoraram diverso e variado sabem o quentinho do escuro,
leito do leito. De noite, os seres mudam seu valor. O dia mostra os
defeitos do mundo: rugas, poeiras, vincos, tudo na luz se vê. À
noite se olha mais, se vê menos. Cada ser se revela apenas pela luz
que dele emana. E ela, nessa noite, produzia suave clareza que nem
lua.
Felizbento
chegou de sua labuta, olhou a mulher num raspão. Ficou como que
encalhado, perdida a água de sua viagem. A mulher se aproximou,
tocando em seus braços. Se apresentava dona de si mesma: essa era
sua irrecusável beleza.
— Esta
noite fique comigo. Deixe as árvores, Felizbento.
O
velho ainda hesitou uma tontura. A mulher nele se envolveu, em
dedilhar de trepadeira. Felizbento se sentia como água dentro do
peixe. Que seria aquilo? Alma deste mundo? Foi quando ela, sem
querer, pisou com seu sapato de ponta o pé descalço do marido. Foi
como pico em balão. O camponês recuou, resolvido. Machado de volta
à mão ele reentrou no escuro.
Certo
dia, Felizbento veio à superfície e pediu à mulher que lhe
desmalasse o fato, preparasse a devida roupa, engomasse os terilenes.
Há mais de trinta anos que aquela roupa não cumpria cerimônia. Os
sapatos já nem lhe cabiam. Os pés tinham tomado a disforme forma da
descalcidão. Não havia, aliás, sapatos que lhe coubessem.
Levou
os antigos sapatos assim mesmo, meio enfiados, calcando os
calcanhares. Arrastava-os pelo chão, não fossem separar-se os pés
dos passos. E lá foi, dobrado como caniço, nessa infância que só
na velhice se encontra. Foi entrando na terra e só uma vez se virou.
Não para as despedidas mas para remexer nos bolsos um esquecimento.
O cachimbo! Remexeu os interiores da roupa. Tirou o velho cachimbo e
revirou-o sob a luz trêmula do candeeiro. Depois, com gesto
desanimado, atirou-o fora. Era como se atirasse toda a sua vida.
O
cachimbo lá ficou, remoto e esquecido, meio enterrado na areia.
Parecia a terra aspirava nele, fumando o inutensílio. Felizbento
ingressou no buraco, desaparecendo.
Ainda
hoje a mulher se debruça na cova e chama por ele. Mas sem gritar.
Doce como se chamasse uma pessoa adormecida. Ainda ela usa o vestido
das flores, sapatos de ponta e o cheiro com que, em desesperança,
ainda tentou a tentação de Felizbento. Depois ela se recolhe,
apagada. Só os olhos, em redonda insistência, semelham coruja com
insónia. Que sonhos convidam aquela mulher a existir?
Os
que voltaram ao lugar dizem que, sob a árvore sagrada, cresce agora
uma planta fervorosa de verde, trepando em invisível suporte. E
asseguram que tal arvorezinha pegou de estaca, brotando de um
qualquer cachimbo remoto e esquecido. E, na hora dos poentes, quando
as sombras já não se esforçam, a pequena árvore esfumaça, igual
uma chaminé. Para a esposa, não existe dúvida: em baixo de
Moçambique, Felizbento vai fumando em paz o seu velho cachimbo.
Enquanto espera a maiúscula e definitiva Paz.
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
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