As
cidades são como os seres humanos: têm um corpo e têm uma alma.
Talvez muitas almas, porque o corpo é um albergue onde moram muitas
almas, todas diferentes em ideias e sentimentos, todas com a mesma
cara. O corpo das cidades são as ruas, praças, carros, lojas,
bancos, escritórios, fábricas, coisas materiais. A alma, ao
contrário, são os pensamentos e sentimentos dos que nela moram. Há
corpos perfeitos com almas feias e são como um violino Stradivarius
em mãos de quem não gosta de música e não sabe tocar. Mas pode
acontecer o contrário: um corpo tosco com alma bonita. Aí é como
acontecia com as rabecas do querido Gramanni. Rabecas são violinos
rústicos fabricados por artesãos desconhecidos. Mas o Gramanni era
capaz de tocar Bach nas suas rabecas... O mesmo vale para as cidades:
cidades bonitas por fora e com almas feias, cidades rústicas por
fora com almas bonitas. Onde se podem encontrar as almas das cidades?
Eu as encontro bonitas nas feiras, nas bancas de legumes e frutas, no
mercadão, no sacolão. Esses são lugares onde acontecem reencontros
felizes. Também na feira de artesanato, nos jardins onde há
crianças, nos concertos... Mas ela aparece assustadora nas torcidas
de futebol e no tráfego... Ah, o tráfego! É nele que a alma da
cidade aparece mais nua. Pensei nisso na semana que passei em
Portugal. Lembrei-me que há lugares onde os motoristas sabem que o
pedestre tem sempre a preferência. Eles param para que o pedestre
passe. Um amigo me contou de sua experiência em Munique: desceu da
calçada, pôs o pé no asfalto e, para seu espanto, viu que todos os
carros pararam para que ele atravessasse a rua. Sempre que paro meu
carro para que o pedestre passe percebo a surpresa no seu rosto. Não
acredita. É preciso que eu faça um gesto com a mão para que ele se
atreva. Não é incomum ver um motorista acelerar o carro ao ver um
pedestre atravessando a rua. Disseram-me que existe mesmo um
videogame cuja sensação está em atropelar os pedestres. E a
contagem é maior se o atropelado for um velho... As cidades voltarão
a ser bonitas quando os motoristas compreenderem que o natural é
andar a pé. Os pedestres devem ter sempre a preferência. No Brasil
há uma cidade assim. Mas não estou bem certo... Acho que é Campo
Mourão, no Paraná.
Rubem
Alves, in Ostra feliz não faz pérola
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