O
chefe da família na máquina de trabalhar. A mulher na enceradeira.
A cozinheira no fogão. O passarinho na gaiola. Os peixes no mar. A
gaivota pescando. A menina rolando no chão. O menino, doente, na
cama. Todos nós somos deste mundo, menos as crianças. E o menino,
perseguido de visões febris, vai falando sem parar:
“O
filho da vaca é o bezerrinho, o pai da vaca é o boi. Não é? Eu
vou morar num sítio. Morar muito. Um dia, quando eu fui fazer pipi,
vi duas professoras de inglês. Igual. Eu vou trazer um pato do sítio
e botar em cima da cabeça do Didi. Quando eu ficar bom, quero ir no
circo. Eu já cortei a mão. Papai, papai-i: conta uma história de
camelinho. História triste, não. Nova e alegre. Mãe, tá doendo,
tou com dor de cabeça. Eu só gosto daquele remédio cor de laranja.
Cafiaspirina eu não gosto. O gatinho caiu no poço, vestido de
amarelo, todo mundo veio em volta pensando que era marmelo. Quando eu
fui no colégio vi nuvens. A nuvem estava passando nas nuvens. Não
estava chovendo. Ai, eu quero sair da cama! Laurita, eu não vou
comer aquela coisa que arde. Papai é um burro, mamãe é a mulher do
burro, e eu sou um burrinho. Mãe-i, você vai um dia naquela esquina
longe? Lá tem anzol. Você compra uma vara nova, que o peixinho não
gosta de vara velha, não. Eu te dou um bombom. Galibi é menina, mas
ela gosta de pescar. Se não fizer um poleiro, o galo sobe na árvore
e estraga as pitangas. Pai-i, quando eu crescer, vou ganhar um trem
de ferro elétrico. Você vai dar. Meu dodói dói. Eu não comi
muita azeitona. Maionese eu não gosto. Maionese é aquele remédio
que eu tomei agora. Eu só gosto de remédio vermelho. Elefante gosta
de amendoim. Tia Edir sabe fazer espantalho: snowman ela não sabe,
não: aqui não tem inverno. Se você fala inglês, papagaio também
fala. Mas fala também paracopaco, não fala? Leão de circo não
come você, não; de jardim zoológico come. Galibi, conta uma
história...”
A
irmã sobe na cama e começa a contar uma história:
“Era
uma vez um nenê. Era só cantar ‘Dorme, nenê’, que ele dormia.
Mas logo depois precisava de chegar uma porção de anjos. Já
conheciam a dona daquela casa, e por isso tinham dado o nenê para
ela. A mãe fazia roupa para o seu nenê querido. Um dia, a família
foi viajar; o nenê foi de roupa muito bonita. Quando voltaram da
linda viagem, quem adorou mais foi o nenê. Era só o que faltava! Os
anjos! Sim, sua mãe sempre precisava dos anjos para ajudar. O nenê
adorava sua mãe, mas não podia faltar nada para ele, e, assim, não
deixava ela fazer nada, gritava, chorava, fazia tantas molecagens que
a mamãe não podia trabalhar. A mãe um dia chamou os anjos e pediu
que eles dessem um jeito. Os anjos, muito espertos, levaram o nenê
para a mata, para o galho duma árvore. O nenê ficou contente da
vida! Os passarinhos traziam flores para ele, as abelhas traziam mel,
o nenê ria. Enquanto isso, seu pai tinha viajado e sua mãe também.
Antes de voltar da viagem, a mãe, de tanta saudade daquele nenê
querido, mandou o irmão buscar ele na mata. Quando o irmão chegou,
o nenê estava brincando com as estrelas do céu, e os anjos estavam
procurando diamantes. Já era bem de noite e o sol estava se
escondendo. Até o seu corrupião estava com fome. Mas, aí, sua mãe
já era tão pobre que não tinha mais empregada. Todos eram pobres,
o cachorro, a árvore, o cavalo. Mas enfim tudo estava em silêncio e
quieto. Era uma hora da madrugada, e já estava quase ficando de dia.
A noite era tão triste e a mãe não tinha comida. Na hora de
jantar, só tinha dado leite, bife, batata, sopa, salada e aveia.
Então chegou um anjinho e contou uma história para o nenê: ‘Era
uma vez uma cidade que tinha muitas casas de frutas, mas o sol estava
tão quente que mandava seus raios para todos os lados’. O nenê
sentiu muito o sol da história, e o anjo então mandou que os raios
de luz começassem a ir embora. Quando ficou de noite outra vez, o
sol foi para a China. A China não é perto, é muito longe. O nenê
também foi para a China, porque não gostava de escuro. E todo dia,
quando ficava escuro, ia para a China. E os anjinhos nunca mais
encontraram o nenê naquela caminha tão boa.”
O
menino diz: “Pai, a Inês me ensinou a fazer navio”.
Paulo
Mendes Campos,
in Elenco
de cronistas modernos - 7
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